segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Meus bons amigos


Meus bons amigos








Nota do autor


Seguem, nas próximas páginas, algumas de minhas impressões pessoais acerca  do período em que vivemos. Literariamente, fico em dúvida em classificar essa minha primeira aventura pela literatura de ficção, como um conto extenso ou um romance curto. Deixo assim a cargo do leitor essa definição, bem como todos os demais sentimentos, de qualquer ordem, que minhas palavras e pensamentos possam gerar, tanto no céu como na terra. Amém.
Diônata Matos – Agosto de 2018






Prefácio

Minha poesia é pura dor
Mas não atentem para isso
Afinal
O que é a dor senão conseqüência da poesia?
Impressa na vida
Gerada do amor
Nascido no tempo
E com ele voltando ao papel.
E analisando bem cada parte
Como a  vida imita a arte
Aqui se faz
E aqui se pinta a tela.



O último cigarro
Estou a minutos de dar um passo que vai mudar pra sempre toda a minha vida e possivelmente toda história. Estou apavorado. Toda minha vida passando num flash e minhas certezas esfacelando-se a cada segundo.
Ninguém chega aqui porque quer. Todos que chegaram nesse lugar onde estou perderam-se de alguma forma nessa noite estranha e cheia de esquinas e, após seu transe, acordaram nesse lugar profundo e escuro. Bobagem pensar que apenas nós mesmos somos responsáveis por fuder nossa própria  vida. Nossa lista de carrascos é sempre maior do que supomos e freqüentemente tem ali quem nunca imaginamos. Já  a culpa, aquela velha senhora católica, de moral judaico cristã ocidental,  que adora sentar em nossos ombros e nos conduzir à igrejas ou aos consultórios psiquiátricos, essa entidade imaginária,  sim, é toda nossa. E só nesse dia, quando estiver apenas você, ela e a esperança de encontrar na caixa um último palito de fósforo, para fumar seu último cigarro dessa noite imunda, é que você vai conhecer a si mesmo e saber exatamente porque está aqui.




Eu
Dentro de mim há um lago
Um rio calmo e um mar revolto
Por vezes apenas nado e em outras
Mergulho atrás de um porto.
O teu rosto me enternece
O teu sorriso me alimenta
Teu corpo me incendeia
E mesmo assim não me esquenta.
Eu sou cheio de detalhes
De ditados ... deduções
Minhas mãos cheias de dedos
E segundas intenções
Sou confuso ... solitário
Companheiro de viagem
Sou profundo ... Sou tão puro
Eu sou pura sacanagem.
Já dizia algum profeta em pensamentos obscuros
Se eu penso: Logo existo
Logo existe um lado escuro.
Eu não presto ... eu confesso
E detesto admitir
Mas você tinha razão em não querer alguém assim.



Deixando o pago
Chovia na tarde fria daquela  cidade, como deveria sempre acontecer nas despedidas.
 Definitivamente, gosto de dias chuvosos. No verão ou no inverno. A chuva modifica as paisagens e também as pessoas. O sol tem qualquer coisa que nos endurece. Ele faz o mesmo com a terra. No sol tudo é certeza, estabilidade. Só quando o temporal se arma, e parece que o mundo vai acabar é que as pessoas percebem como são frágeis e assim se reconhecem no outro, seu semelhante. Quando o céu desaba pouco importam nossas crenças, diferenças sociais ou  bancárias. Quando chove somo todos iguais. Deve ter uma marca assim em nosso DNA, afinal descendemos de caçadores, coletores, agricultores. O sol os chamava para a luta, para o trabalho. A chuva os deixava sem opção senão ficar “ aconchegados” com a família curtindo o som da água até que ela passasse. Ou, agora falando sobre mim, deve ter a ver com o eterno desejo canceriano de se esconder numa casaca, ou qualquer lugar protegido. Ouvindo a chuva debaixo de algum telhado tenho a sensação de proteção; sentindo-a molhar meu rosto enquanto ando pela rua, de liberdade. Em dias de chuva, desde o Charles Kiefer, também tem poesia.
Sair da cidade que nascemos e crescemos é sempre cortar mais uma vez um cordão umbilical. É sempre uma ruptura com tudo que vivemos ali,  e sem rupturas não há futuro, tudo para , o que talvez seja a única e verdadeira morte.  Enquanto caminhava até a rodoviária, cada pedra tentava me parar, lembrar de alguma história que escrevi nesses anos de vida por aqui. Algumas pareciam tentar me demover da ideia da partida. O passado é sempre uma porta muito difícil de fechar, mas a passagem rumo a meu destino eu já havia comprado há muito tempo.












Príamus

 Acabava de passar pela Praça da Bíblia, onde  eu e Príamus costumávamos passar longas tardes debaixo da figueira, tomando vinhos, tocando violão e fumando alguma coisa.  Príamus era um cara estranho. Mas pra mim, estranho, sempre foi o signo de novos mundos.  Tudo que se repete tende a morder o próprio rabo  eternamente. Talvez por isso tenhamos nos tornado tão próximos . Ele adorava os dias frios e nublados, como eu, e vestia-se de preto com tons de cinza escuro. Mesmo quando esquentava e o sol aparecia, se precisasse sair na rua, seria de preto e nesse caso de chapéu e óculos escuros. Sempre rolou um sarro com o estilão dele na escola, mas como ele não mostrava muito os dentes pra ninguém, o pessoal não ia muito longe nas brincadeiras, por não  ter a menor ideia do que ele era capaz. Pra mim era uma diversão assisti-lo. O cara era na verdade um grande ator, talento que iria segui-lo até hoje. E toda aquela explosão de sensibilidade, expressa num personagem que ele criou, naturalmente preenchia de medo o coração de uns meninos sem imaginação e de admiração outros com muita imaginação. Ninguém sabia se ele era um psicopata, um bruxo, um ateu ou se simplesmente tinha preferencias musicais excêntricas.
  A escola onde estudávamos era católica e por isso conservadora,  ou o contrário. Existia há mais de cem anos antes deste tempo naquele mesmo lugar. Por essa longevidade já haviam estudado por ali os pais de muitos de meus colegas. Não era o meu caso, até porque a escola era particular e as mensalidades eram demasiadas altas para as possibilidades financeiras da minha família. Consegui estudar ali graças a uma bolsa parcial de estudos que me proporcionava a convivência com colegas descolados da minha realidade social. Príamus, por exemplo,  vivia há anos luz das carências materiais que me eram tão familiares. Desde o iogurte que aparecia de vez em quando aos restos de sabonete que se uniam para a reutilização, tão familiares a quem não nasceu com grana. Dividir quarto com mais dois irmãos, passar roupas para os mais novos enquanto assume as vestimentas herdadas dos mais velhos. E por aí vai a longa lista de hábitos peculiares e correntes nas proximidades das bases da pirâmide social. Mas, essa não era a realidade de Príamus. Ele vivia  uma grande casa, encravada num dos muitos terrenos/bosques que os ricos da cidade ocupavam . Porém, enquanto a maior parte desse povo da elite buscava seguir tendências arquitetônicas modernas e seguir as últimas tendências das modernas construções das grandes cidades, o imenso casarão da família Klaus permanecia com os traços da arquitetura inglesa do século XVIII, um verdadeiro casarão de bruxas. Todo o aquele aspecto visual daquela residência alimentava a lenda do próprio Príamus ,e ajudava a tornar ainda mais mágica a atmosfera daquela pequena cidade da Serra Gaúcha. Com certeza nunca vou esquecer a primeira vez que entrei naquele lugar. Eu tinha uns doze anos quando comecei a estudar com Príamus. Logo ficamos amigos. Possivelmente nos uniu o desprezo dos outros em relação a nós. Eu, por ser pobre, e Príamus, por ser exótico para os padrões  locais. Certo dia, ao montar um grupo de trabalho, Príamus e eu, pra variar acabamos sobrando e sendo a única opção um do outro. Ele sugeriu que fizéssemos o trabalho na sua casa, e eu, tomado de medo e curiosidade e tentando não demonstrar nenhum dos dois fingi pouco caso e concordei. Normalmente, conhecer de perto aquela casa,  seria o fim das ilusões, que eu e todas as crianças da cidade criamos vendo aquele “mausoléu” à  distância, mas não foi.  Na verdade, foi o início de uma relação de encanto que nunca terminou. Ainda acho que aquela casa tem lugares que não suspeito , que dão para dimensões que desconfio menos ainda existirem.
 Naquele mesmo tempo, em nosso pacato povoado lendas e histórias proliferavam e mantinham o tédio distante daquele lugar distante demais das capitais.  No caminho, entre a minha casa e a de Príamus, por uma estrada, metade asfaltada e metade de chão batido, ficava a casa do velho general Bernardo Góis, que participou de uma grande revolução do nosso Estado e que de grande herói da cidade passou a ilustre fantasma assombrador da região. Os meninos diziam que o velho general passava por ali nas noites de neblina pra levar jovens pra sua guerra. Assim explicou-se o sumiço de um jovem em outras épocas desse lugar. Balelas ou não,  vez ou outra, quando eu retornava da casa de Príamus andando a pé, ouvia passos, galhos quebrando e quase sentia o bafo do velho general  no meu pescoço. Além disso, iluminação pública nunca fora prioridade em município tão pequeno e quase sem incidentes criminais. Príamus debochava de tais histórias, não porque não acreditasse nos fenômenos, mas porque os via sob uma perspectiva menos estreita que nossa então visão  católica  do mundo.
Além da “estranheza” que causávamos às outras pessoas não tínhamos lá tanto em comum, Príamus e eu. Príamus era um típico aquariano com visões de vanguarda sobre o mundo. Enxergava tudo que acontecia quilômetros além daquele vilarejo. Urano orbitava seu mundo e não deixava que seu traseiro aceitasse qualquer conforto que o fizesse parar. E eu, apesar de meus cancerianos dilemas internos e das dificuldades que sempre tive em mudar sempre me deixei levar pelas revoluções que Príamus adotava e, uma vez nelas, me entregava profundamente a essas causas. Isso sempre foi assim. Não que abandonasse a segurança, pelo contrário, Príamus, nesse caso, era a âncora  que eu precisava. Dificilmente tínhamos qualquer briga mais séria e fomos inseparáveis nesses primeiros anos de nossa adolescência. Fala-se sobre todo relacionamento ser formado a partir de uma relação complementar composta por dois seres com características fundamentais diversas, numa simbiótica sobrevivência de opostos, mas acredito que não era nosso caso. Éramos mais aspectos complementares de uma mesma parte e, como não poderia deixar de ser, tínhamos, sim, nossa contraparte. Heitor era nosso contraponto.












Heitor
Eu assistia passivamente enquanto Heitor tentava demover Príamus da idéia de invadir a escola à noite para sabotar o que seria uma data simbólica/importante da liturgia católica. Príamus, que não professava religião alguma, mas tinha especial aversão pela fé católica, sentia a necessidade de questionar tudo que estava estabelecido, o que naquele momento era a comemoração de Corpus Christi. Príamus havia planejado entrar na escola, à noite ,  onde no dia seguinte haveria uma apresentação dos tapetes de Corpus Christi, confeccionados pelos alunos e confeccionar rapidamente um último e chocante tapete sobre as glórias de Satã. O único intuito de Príamus com isso era  se divertir com o choque que causaria nas recatadas senhoras que visitariam o local. É claro, que já havia ali uma semente de rebeldia/ questionamentos, mas a tônica do momento era a  diversão. Aquilo era contra tudo que Heitor entendia da vida, mas não seguir Príamus e eu o afastaria das únicas amizades que ele tinha. Era sua cabeça capricorniana, com seus pés cravados na terra, lhe dizendo que aquilo tudo ia acabar muito mal, contra seu medo, também tão capricorniano de perder, nesse caso, seus únicos amigos. Nesse caso, venceu seu medo de perder os amigos  e Heitor, mesmo contra toda sua lógica, topou a aventura. Naquela mesma noite, enquanto os irmãos residentes na escola faziam suas orações na capela da instituição, que ficava no pátio da escola, nós três invadimos o pátio secundário, pelo muro atrás do ginásio. Tudo, naquele lugar , nos remetia a aterrorizantes arquétipos de medo com que Holywood nos brindou durante toda vida. Aquele canto gregoriano da missa dos irmãos vibrava na nota dos nossos maiores temores, e cada sombra daquele lugar sobre as imagens dos santos ampliava todo  o medo que Jesus nos deu. Pra completar, estávamos ali brincando com coisas sagradas e promovendo (mesmo que com intenções anedóticas) a causa do maior inimigo de Deus. Assim, a quem clamaríamos se precisássemos de ajuda diante de um possível ataque de qualquer entidade cinematográfica demoníaca que por ali acaso estivesse? Juro, que por mim iríamos embora assim que pulamos o muro, e por Heitor nem teríamos entrado. Mas Príamus não recuaria e, portanto não tivemos escolha senão engolir os nossos medos e seguir até o fim com nosso intento. Assim foi feito e no dia seguinte a bomba explodiu na cidade. Atribuía-se o feito a grupos “terroristas” de diversos matizes, templos de confissão espirita em geral, adoradores de satã de bandas de heavy metal que sacrificavam crianças em seus rituais e outras bobagens de mesmo quilate. Eu admirava a obra de Príamus sem a menor inveja do autor. Heitor, ainda pensava que seria descoberto a qualquer momento e expulso da escola entre outras sanções. Príamus, glorioso, via tudo de longe e, com certeza, internamente, dava gargalhadas,  observando o tamanho da preocupação das pessoas com, para ele, semelhante bobagem. Esta historia de nossa adolescência deixa bem explícitas as diferenças entre eu, Príamus e Heitor. Heitor era de ascendência alemã e estatura mediana. Sua família, em função do trabalho do pai, que era advogado e trabalhava para uma empresa produtora de vinhos, havia se mudado  para aquela colônia de descendentes  italianos há alguns anos. Sempre achei que o signo de Capricórnio era muito adequado a algumas características de sua etnia. Em nossos encontros, a falta de pontualidade, normalmente de minha parte,  deixava Heitor enfurecido. Eu não compreendia bem porque cinco minutos faziam tanta diferença pra alguém,  mas aprendi, com o tempo , a evitar deixá-lo esperando. Outra coisa que o deixava um tanto contrariado eram minhas visitas surpresa, que com a intimidade tornaram-se rotineiras. Do nada, eu adentrava seu quarto sem pedir com licença e sem avisar que viria. Ele mesmo, jamais foi ao meu encontro ou a qualquer outro lugar que eu lembre sem avisar antes, e muito menos entrava sem pedir licença. Príamus e eu brincávamos com essa formalidade toda dele, o que frequentemente o deixava vermelho de raiva ou de vergonha. Heitor era nosso salva vidas quando se tratava de cumprir prazos, principalmente no que diz respeito aos trabalhos da escola. Ele sempre foi muito responsável com suas tarefas da escola e, além disso preocupava-se se tínhamos feito as nossas. Sempre pensei que ele devia ser um espirito mais velho que nós. Mas antes que eu faça Heitor parecer um chato irremediável, devo dizer que sempre foi muito agradável sua companhia. Como bom alemão que era, sempre foi adepto e disposto a discutir sobre grandes temas filosóficos, além de ser capaz de dissertar por horas sobre tempo e temperatura. Foram muitas madrugadas que passamos, Príamus, Heitor e eu a debater Jung, I Ching e tantas outras cabalas, procurando Deus entre viagens no jardim. Seríamos apenas nós três para sempre, mas quis o destino adicionar dinamite aos nossos sólidos e contidos universos de introspecção. E a dinamite era Camilo.










Camilo
Dizem por aí que estranhas e potentes formas de energia parecem ser liberadas na pratica deliberada de qualquer forma de desobediência, desagravo ou insurreição. Príamus parecia conhecer essa lei e estar sempre a buscar heresias e blasfêmias capazes de desconsertar quem quer que parecesse estagnado. No entanto, eu , como entusiasta fiel de suas maquinações, nunca pensei que seria vítima delas. Pois bem, meu dia havia chegado, e no dia que seria uma grande festa da turma na casa de Príamus, com todas garotas da turma por lá, Príamus decide levar como convidado de honra meu irmão mais novo, Camilo, que na ocasião, em 1998, tinha uns 11 anos de idade, enquanto nós tínhamos em média 14.  A presença do menino ali pra mim era quase tão ruim quanto se minha mãe estivesse na festa e só por isso minha noite já estava irremediavelmente estragada. Como se não bastasse tal mal feito, o intruso convidado de Príamus, logo centralizou a  atenção de todos contando piadas, a maior parte delas sobre mim. Passariam anos até que eu pudesse apagar os reflexos do que  essa catastrófica noite significou para minha então frágil vida social. Depois daquela noite , Camilo entrou para a turma antes de sair da infância. Dali em diante eu não tinha como evitar de levá-lo para nossas atividades já que todos perguntavam pelo guri o tempo inteiro,  e pareciam ignorar que se tratava de um piá enquanto todos nós já éramos ‘quase homens”. Bom, passados meus ranços com o irmão mais novo, não tive o que fazer se não aceitá-lo. Com o tempo confesso que comecei a gostar e até a tirar proveito da popularidade precoce do fedelho de várias caras. Habitante do signo solar de gêmeos, Camilo exalava simpatia e oxigenava nossos dias. Era, para Príamus, a fagulha para detonar suas ideias mais insensatas. Era o medo nos olhos de Heitor e mais vida nos meus dias. Assim, fechava-se o núcleo duro das parcerias de aventuras e conquistas da adolescência. Como o jovem D’Artagnan, Camilo encerrava a formação de nossa singular e complementar trupe mosqueteira, até que o tempo nos separasse, um por todos e todos para o que viesse.









 A mansão dos Klaus 

A   família Klaus veio morar naquele nosso vilarejo por conta do clima. O velho Edmund gostava do frio extremo. Oriundos de uma das regiões do estado habitadas por imigrantes germânicos que chegaram da Alemanha até aqui para colonizar o fecundo Vale do Caí, numa época de entusiasmo coletivo pelos encantos da América, os Klaus fizeram fortuna na região e contribuíram para o desenvolvimento de diversas culturas alimentares desse lugar. Porém, Edmund Klaus era desde cedo a ovelha negra da próspera estirpe e desejava ,sabe lá por quê, o senhor das montanhas germânicas, ir além das prósperas planícies ocupadas por seus confrades. Assim, seguindo o caminho natural de sua existência e, abençoado pela fortuna acumulada por sua família, Edmund resolveu estabelecer residência numa cidade em formação na serra Gaúcha e predominantemente habitada por descendentes de italianos. Nessa região, investiu no plantio e no comercio de uvas para a produção de vinhos e ali reproduziu fortuna semelhante a  que seus pais obtiveram como cultivo da bergamota. Contudo, o velho Edmund conservava em si interesse muito menor nos números financeiros de suas colheitas,  que nas cartas que mensalmente lhe chegavam de alguma região do Tibete. Guardava com muito mais segredo esses correios do qualquer demonstrativo bancário que demonstrava a franca evolução dos investimentos materiais que tinha mundo afora. Sua notória prosperidade financeira, assim como os muitos mistérios acerca de sua misteriosa personalidade, eram assunto corrente em todos bolichos daquele pequeno lugar do mundo. Nós, como amigos de Príamus, seu filho, éramos obviamente curiosos por desvendar as lendas que envolviam a família dona daquele casarão de arquitetura inglesa e envolto em mistérios. Certa feita fomos, a convite de Príamus almoçar com sua família no casarão. Camilo, Heitor e eu aguardávamos ali, parados em frente aquela porta, três vezes mais alta que qualquer um de nós, enquanto a campainha evocava o criado a abri-la para que entrássemos. Entramos ali e voltamos aos contos de fada de nossa infância quando nos deparamos com três imensas escadas a nossa frente e com o maior lustre que havíamos visto na vida. As paredes tinham papéis de paredes ao invés de tinta, onde  haviam quadros que até então só conhecíamos por livros. Príamus nos conduzia como se andasse no corredor da escola enquanto nós pisávamos o chão de outra dimensão. De onde paramos, ele gritou:
- Claudius, o almoço está pronto?
Após dez segundos apareceu o sujeito vestido como os mordomos que conhecíamos do cinema de Hithcook anunciando o cardápio.  Três lances de escada precipitavam-se a nossa frente e Príamus subiu e sumiu por um deles e nos deixou aguardando sua volta. Eu, sob protesto de meus outros parceiros, intimidados ante a imponência do lugar, resolvi subir e explorar um dos outros lances de escada. Assim, subi este primeiro ao que dei de encontro com um corredor com paredes cobertas de livros, vitrais, espelhos e portas fechadas. Arrisquei então a subida de mais um lance ,ao que dei com um outro grande corredor com a iluminação ligeiramente diminuída, paredes forradas de madeira de lei finamente esculpida e símbolos que me atordoavam e remetiam aos mistérios daquele lugar. Mesmo assim, subi mais um lance das escadas daquela mansão que, aquelas alturas eu não sabia mais quantos andares possuía. A iluminação desse terceiro corredor era ainda mais escura e densa que a do andar inferior e já me causava certo frio na espinha. Fitei, uma a uma, suas paredes sem janelas, seu chão de carpete e seus candelabros de pouca luminosidade. Andei, lendo os títulos de livros antigos e quadros expostos em suas paredes por mais de cem metros até perceber, o quão estava longe das escadarias de acesso e fitar a figura  assustadora , do que anos mais tarde eu saberia tratar-se de Baphomet . Correu-me naquele instante pela espinha o frio cristão de quem verifica a presença do próprio Diabo a seu lado. Corri, desci todos os degraus daquele casarão,  que havia por curiosidade escalado, como se devesse algo para o próprio Satã. Quando tornei ao andar térreo, Príamus e os rapazes já me procuravam para o almoço que estava servido. Almoçamos , ou almocei o que pude ante ao terror que a imagem daquela casa ou a minha imaginação católica me inspiravam  .  Também nunca contei a ninguém sobre as visões que tive naquele corredor. Apenas eu sei da voz do bode que sussurrava em meus ouvidos e dos horrores que passei longe de Jesus até que voltasse ao  térreo andar onde todos estavam. Era minha iniciação ao reino dos que querem saber demais.












Nem todas as noites são iguais

O ano de 2002 passava furiosamente no Brasil, no ápice de uma crise econômica promovida por sucessivas medidas de austeridade aplicadas por governos neoliberais,  que seguiam a cartilha de organismos financeiros internacionais subordinados aos interesses dos EUA. Minha família vinha, desde antes de 1994, arrastando-se financeiramente como podia, para manter a fome longe da mesa e as “crianças” estudando. Eu sou o segundo filho de uma família de classe média baixa de quatro irmãos. Camilo era o caçula. Mas, apesar dos reveses econômicos, tudo ia bem na escola naquele ano, que seria meu penúltimo no ensino médio.   Já haviam passado por mim os piores anos da adolescência, quando o ser humano expõe-se as mais ridículas situações para obter aprovação social no seu meio.     Aliás, apesar do turbilhão de informações da grande mídia, que trazia  todo dia novos produtos destinados a vender e influenciar os públicos mais jovens, posso dizer que minha turma mantinha-se acima dessas tendências e da pequena mediocracia que nos cercava. Tínhamos lá nosso  estilo próprio,  mas penso que agíamos sem maiores afetações. Passaram por nós nesse período inúmeros pseudo surfistas, com suas bermudas floridas,  que enriqueceram diversos donos de surf shop dessa geração. Esse mesmo mercado, durante esse tempo, também vendeu milhões de cds, além de secadores e alisadores de cabelo para os emotivos pós punks. Tudo isso entre outras modas que o mercado imprimiu na sociedade desse tempo. Quanto a nós, não que elas não nos afetassem de alguma forma, mas talvez nos salvasse certo saudosismo por “modas” que passaram. Tudo que ouvíamos de música,  vestíamos e as pessoas que mais admirávamos,   eram na sua maioria oriundos dos anos 70 e 80. O passado fazia muito mais nossas cabeças  que as novidades que o mercado nunca cansava de trazer. E foi nesse clima, quase nostálgico, que estávamos vivendo o que seria, possivelmente, o melhor ano de nossas juventudes. Éramos inseparáveis. Apesar de destoarmos das modas da época conseguimos ser até um tanto populares. O futuro parecia promissor e até encantado, mesmo que não tivéssemos a menor ideia do que de fato ele seria .Éramos, enfim , felizes, e sabíamos disso. Eu, tinha certeza.
A vida vem em ondas e cada uma delas tem e deixa marcas únicas.  Cada fase da vida acaba sintetizada ou simbolizada nos anais da memória  por alguma ou alguma cenas que guardamos  com  carinho especial e que, em si, resumem o espirito de um tempo. Tenho para mim que a Semana do Festival de Artes da escola, que acontecia sempre durante a primavera, daquele ano, representa bastante sobre aqueles verdes dias. Antes disso, no início daquele mesmo ano, nossos monótonos horizontes revoltaram-se num  insight de Príamus.
- Vamos montar uma banda! – Príamus quebrava o silêncio de uma bucólica tarde , enquanto tomávamos chimarrão sobre a pedra do morro, com essa insólita novidade.
- Como assim ?!? – Pergunta Heitor com a face pálida e o espirito de quem sempre temeu novidades.
- Cara, é isso! – Posso tocar bateria, Príamus fica no contrabaixo, meu irmão na guitarra e o Heitor...bom...o Heitor toca aqui. – Dispara Camilo apontando para seu pênis pra sacanear o reticente Heitor.
- Seu filho da mãe.... – Resmunga Heitor com as faces vermelhas e a voz embargada de quem não sabe muito como lidar com brincadeiras.
-Legal, tenho canções minhas que podemos tocar no Festival da escola. – Disse eu, deslumbrado com a idéia de Príamus.
Estava formada ali, por minha sugestão e com aceitação geral, exceto o esperado protesto de Heitor, ainda com receio da ditadura, a banda “Marxcianos”.
Na sexta feira seguinte, após as aulas, iniciaram os ensaios da banda, que decidimos, seriam num galpão vazio que ficava no sítio da família de Heitor. Montamos lá no velho galpão nossos instrumentos e iniciamos os ensaios.  Toda nossa imperícia com os instrumentos eram compensadas por nossas letras, que embora ingênuas, tinham poesias bem construídas e repletas de conteúdos filosóficos. Mas, o fundamental mesmo para aquela época eram as altas frequências com que vibrávamos . Naquelas tardes e noites no galpão de Heitor, entre garrafas de vinho e carteiras de Gudang Garam ( cigarrilhas de canela  que Príamus trouxe para nós da Indonésia, mas que também eram vendidos em tabacarias da capital), que agora fumávamos mais pela atmosfera que o ato nos proporcionava do que por qualquer dependência física de nicotinóides. Inspirávamos-nos nas bandas dos anos 80. Éramos filhos dos filhos da revolução. Nossos pais tinham vivido sob uma ditadura que há algum tempo ninguém mais falava sobre ela. Mas, esses artistas estavam ali pra nos lembrar disso tudo. E nós, por isso, e por tudo mais que eles tinham pra falar sobre nossas angustias, amávamos Chico Buarque, Belchior, Oswaldo Montenegro, Raul Seixas, Nei Lisboa, Engenheiros do Hawaii, Legião Urbana, Cazuza, Zé Ramalho, Pink Floyd, Bob Dylan e tantos outros mais que nos faziam sonhar e contestar. Assim, entre canções,  sonhos     e pequenas contravenções,  preparávamos os “Marxcianos  “ para o grande Festival da Primavera, nosso grande   momento naquele ano. Neste caminho descobríamos também que não tínhamos tanto talento quanto pensávamos.
- Precisamos de um vocalista – Vociferou Heitor irritadíssimo, após mais um de meus esquecimentos de letra durante os ensaios. As canções eram boas e não estávamos tocando tão mal, porém definitivamente nenhum de nós sabia cantar.
- Não! Vamos manter assim. – Rebateu Príamus,  com o tom de quem queria mesmo uma briga com Heitor e achava que eu devia continuar cantando na banda.
- Calma,  Príamus.  Acho que o Heitor tem razão e eu conheço alguém que penso que fecha com o clima do nosso projeto. – Intervi eu querendo ao mesmo tempo fugir da responsabilidade do vocal e amenizar o clima tenso entre Príamus e Heitor.
- Acho que é isso, então. Traz ele amanha, mano! – Definiu Camilo.
Príamus foi voto vencido e no dia seguinte iniciamos o ensaio como um quinteto   com a participação de Francisco. Ele era mais velho que nós, tinha toda experiência e paciência  que não tínhamos   e conquistou rapidamente o respeito pessoal e musical de todos, incluindo o de Príamus, que a principio era contra. Francisco, Príamus e eu compusemos várias canções novas e Heitor estava tocando teclado, o que ampliava o horizonte harmônico das nossas canções. Da galera da nossa geração, na escola, muitos ainda sonhavam em jogar futebol, outros tantos,  mais centrados, em cultivar uvas ou construir prédios, mas nós tínhamos certeza de que viveríamos de arte. O ano inteiro transcorreu nesse clima, enquanto o virginiano Francisco colocava ordens nos materiais de nossa banda e o precavido Heitor nos alertava para não descuidarmos dos compromissos escolares.
E nesse clima musical os dias passavam velozes,  como passam sempre quando estamos a fazer o que amamos. E, afinal,  chegamos ao grande dia da apresentação do Festival da Canção, para o qual havíamos ensaiado tanto. O dia não estava menos mágico do que o ano tinha sido até então. Soprava um vento norte, o sol brilhava e o tempo estava morno e abafado. Naquela semana na escola, tradicionalmente, as aulas iam só até o meio dia e nas tardes ocorriam as apresentações culturais. O ginásio ficava lotado e era escurecido enquanto um palco ao fundo brilhava. Os alunos andavam pra cima e pra baixo sob as árvores do bosque da escola. Muitos ansiosos para a apresentação pela qual haviam esperado o ano todo. Não eram permitidas bebidas alcoólicas por ali, mas todos tínhamos bons vinhos camuflados em garrafas de refrigerantes e, em locais discretos daquela vasta área,  bebericávamos para controlar a ansiedade natural do grande momento. Éramos pura euforia.
-Me passa o vinho aí, Camilo. – Disse Príamus, nitidamente tenso.
- Me dá mais um cigarro. – Me pediu Heitor, que fumava um Gudang depois do outro.
- Toma aí – Disse Camilo,  enchendo as xícaras de café de todos com vinho, que Heitor tinha trazido de casa.
- Gurizada, o negócio agora é ficarmos tranquilos. Ensaiamos bastante e vai dar tudo certo. – Eu disse isso, talvez mais nervoso que os outros, mas tentando acalmá-los. – E agora, alguém me dá um cigarro e um vinho que eu quero é curtir ao máximo esse dia, que como o rio do Heráclito, nunca mais será o mesmo. - Concluí romanticamente, enquanto de forma vagarosa aspirava a deliciosa cigarrilha de canela e sorvia aquele vinho, atribuindo-lhe características que nenhuma outra bebida tornaria a me proporcionar.
- Tá bom, poeta. – Brincou Camilo, cansado do melodrama geral.
Nesse momento chegou Francisco que não esperava conosco, e com certeza estava mais tranquilo que todos,  pela experiência musical e idade superior as nossas.
- Parecem nervosos, meninos. - Brincou Francisco,  acendendo um Marlboro vermelho, que segundo ele era um “cigarro de homem” e, nesse caso, nossas cigarrilhas de canela, não o eram. – Fiquem tranquilos, bebam um pouco mais, mas não muito, que vai dar tudo certo.
Francisco já havia participado em inúmeras apresentações, shows e eventos. Chegou a atuar em vários grupos musicais profissionais e não tinha mais problema nenhum em enfrentar um palco.  Além disso,  era muito mais perito que nós todos tanto no vocal como em qualquer outro instrumento que usávamos na banda. Conhecia a máquina por dentro o que, ao mesmo tempo em que lhe dava toda segurança do mundo,   também o poupava de todo o encanto que aquele novo mundo tinha para nós.
- Lembrem-se de uma coisa,  – Asseverou Francisco em tom agora sério e filosófico -  vocês só fumarão o primeiro cigarro uma vez. Nenhum outro depois deste terá o mesmo gosto. Então aproveitem cada segundo e nunca se esqueçam disso.
Assim, após o meditativo silêncio que usamos para absorver aquele profundo e sábio conselho de Francisco, seguimos nosso dia de astros do rock. Finalmente, o ginásio, o palco, a multidão na plateia e as luzes acesas. Fomos a terceira banda a apresentar-se e cada fio de cabelo do meu corpo arrepiou-se quando subimos no palco ovacionados (pelos amigos, é claro). Tocamos três de nossas canções, com alguns erros; uns por falta de ensaio e outros por excesso de vinho, mas no geral foi uma boa apresentação. Assistimos as outras bandas concorrentes tocarem e fumando um cigarro após o outro aguardamos a decisão dos jurados. Ganhamos o troféu de melhor canção da tarde com nossa ”Mecânica Tropical”, escrita por mim e por Príamus e, além disso, Francisco foi escolhido como o melhor músico do Festival. Eram nossos esforços de um ano inteiro sendo premiados. Era a chave de ouro pra fechar aquele tremendo ano. Tínhamos muito que comemorar,  e já podíamos beber a vontade. E agora, junto com vários outros grandes amigos, tomamos as ruas da nossa pequena cidade madrugada adentro, celebrando nossos feitos e nossas jovens e promissoras vidas. O tempo continuava abafado naquela noite. O vento norte anunciava a chuva que não deixaria o dia amanhecer sem chegar. Sinalizava a mudança dos tempos. Aquele era um rito de passagem. Amanheceu chovendo.








Como nossos pais
Éramos todos filhos de alguma revolução. Nascidos entre os anos 80 e 90. Herdeiros da revolução sexual. Esmagados pela queda do muro. Também herdeiros de uma revolução local de fazendeiros que outrora deixou esse local em farrapos. Carregávamos nas costas, sem nem saber bem disso, séculos de conquistas imperialistas que culminariam num mundo polarizado. Netos de 20 anos de repressão militar que calaram ou mataram nossos pais. Somos filhos das suas lutas e também das sua omissões. Herdeiros de suas bênçãos e maldições. E, ademais, como compreender nossos tumultuados caminhos sem estudar os motivos, gens e composições astrais que nos conduziram até aqui.
Minha mãe é neta de imigrantes italianos e nasceu aqui mesmo nessa região. Casou-se com meu pai, de ascendência negra, que chegou até aqui para trabalhar nos parreirais locais. Não é preciso dizer que a família de minha mãe não fez o menor gosto da união e mesmo vencidos nunca a aceitaram plenamente. Com muito esforço meu pai conseguiu comprar uma pequena propriedade e sustentar a  mim e a meus três irmãos trabalhando como ferreiro. Meus pais sabiam não ser benquistos em certos lugares da cidade e por isso conduziam suas vidas discretamente e nos orientavam a fazê-lo da mesma forma. Cresci acompanhando suas dificuldades e indignando-me ante a paciência com que suportavam calados injustiças de diversas ordens.











                                         



 Isabelle
- Com licença, este lugar está ocupado? – Perguntou-me a menina referindo-se ao assento vago ao meu lado no ônibus da escola onde estava minha mochila.
- Sim...Sim ..quero dizer ..não... não .. não está ocupado. Já vou tirar a mochila. Pode sentar .  – Respondi, sentado no meu assento sem nenhuma indiferença e rapidamente tirei minha mochila verde oliva que ocupava o assento contíguo ao meu. Ela agradeceu, sentou-se e meu mundo parou.
- Meu nome é Isabelle. Mudei para cá com meus pais há pouco e estou começando hoje na escola. Quase perdi o ônibus.
- É .. .ele passa ..todos os dias . – Foi tudo o que consegui dizer naquele momento, tamanha a impressão que o rosto, o cabelo, a boca, a leveza dos movimentos e tudo mais em Isabelle haviam me causado. Depois passei horas me condenando por ser tão tapado.
Ele passa todos os dias....que tipo de resposta era essa??? Que tipo de idiota responde algo assim ???
Durante todos os dias seguintes, embora o assento ao meu lado estivesse quase sempre vazio, ela sentava-se em outros lugares no ônibus e limitava-se a cumprimentar-me com um frio aceno de cabeça. Assim, todos os dias eu voltava a culpar-me por ser tão obtuso e não ter aproveitado a chance que tive de conversar com ela.
Passaram-se dois meses sem que voltássemos a nos falar, mas de alguma forma avançamos por olhares e sorrisos em nosso tímido relacionamento. Logo iria acontecer o grande baile do Clube Central, um suntuoso salão de festa da classe média da cidade, que vez por outra promovia eventos para a juventude. Esses momentos sempre causavam grande euforia entre o pessoal da escola. Eu e meus bons amigos estávamos igualmente excitados com a ocasião e nos organizávamos para aproveitar essa noite. Nos reunimos às 19h,  antes do baile que iniciava as 22h,  para aquecer a noite bebendo vinho antes de entrarmos no Clube. Com isso garantíamos que não precisaríamos gastar tanto de nossos limitados recursos financeiros na copa do clube. Era mais uma noite mágica daqueles tempos. Mais uma celebração daqueles momentos únicos. Éramos uma tribo, reunida em torno da fogueira pra celebrar.
- Vamos entrar logo na festa – Sugeriu Heitor , nitidamente nervoso.
Todos concordamos,  e escondemos o resto do nosso vinho sob as folhagens da Avenida Central. Compramos nossos ingressos e entramos na festa.
- Cara, que climão! Vou procurar meninas tão bêbadas quanto eu. – Disse Camilo, com um sorriso de orelha a orelha.
- Meu, olha a arquitetura desse lugar. – Observou Príamus, que parecia estar sempre em outra dimensão.
Fui até a copa e peguei duas garrafas de cerveja para bebermos sentados nas mesas que cercavam a pista de dança. Nenhum de nós era muito chegado em qualquer tipo de dança. Estava claro quando entramos no salão e agora haviam baixado a luz do salão, deixando nossa mesa sob um breu.  Foi nesse instante que vi Isabelle cruzar pelo canto do salão. Uma visão ainda mais maravilhosa que a que tinha de rotina na saída e na entrada da escola. Ela me viu, me abanou e sorriu como nunca dantes.
- Vai falar com ela, sua besta. – Provocou-me Príamus.
Eu ainda não estava pronto e não tinha a mínima ideia do eu dizer. Precisei de mais duas cervejas pra tomar coragem de cruzar o salão, pegar Isabelle, que parecia esperar por isso, pela mão, e conduzi-la até uma área externa do salão. Chegando lá, sem palavras, e mais por não ter o que dizer do que por coragem, dei-lhe o que seria nosso primeiro beijo. Não foi meu primeiro beijo e com certeza nem o dela. Mas é certo que foi especial. Ela foi a grande paixão da minha juventude e depois desse beijo nada seria como antes. De certa forma, depois dessa, todas as bocas, flores e perfumes que por mim passaram tinham notas dessa noite.















O sistema é mal mas minha turma é legal
Após o baile do clube Central comecei a namorar com Isabelle. No início isso significava irmos e voltarmos sentados lado a lado no ônibus da escola, trocando beijos e informações sobre nossas vidas. Com o tempo nos aproximamos também nos intervalos da escola e mais tarde acabamos conhecendo e apresentando nossos amigos e amigas. Estes momentos, é claro, também eram boas oportunidades para meus tímidos amigos aproximarem-se de algumas meninas. Nesse momento Heitor começou a ficar com Letícia e Príamus com Ana, ambas amigas de Isabelle. Acabei conhecendo outros grandes amigos nessa mistura de grupos. Dois deles foram Sebastian e Marina. Marina era a melhor amiga de Isabelle. Eram inseparáveis e de temperamentos opostos. Marina tinha muito mais maturidade do que Isabelle. Tinha sido mãe ainda adolescente,  e por isso obrigada a de alguma forma amadurecer a fórceps. Seus pais a mantiveram frequentando a escola após o parto e cuidavam de boa parte da criação da filha, que teve com outro adolescente que, embora tenha reconhecido a paternidade não tinha a menor condição de assumi-la. Esta situação dentro de uma escola católica e conservadora, numa cidade do interior mais conservadora ainda, com certeza atenuava a carga emocional que essa situação toda já tinha para Marina. Ela enfrentava tudo isso com maturidade incomum para sua idade na época, embora ainda estivesse em plena passagem da adolescência para a idade adulta.  Tivemos um caso de simpatia mútua a primeira vista e logo descobrimos nossas muitas afinidades culturais e de espírito. Ela acompanhava Isabelle e eu em programações diversas que fazíamos. Preenchia algum vazio que tínhamos entre nós.  Sebastian era um cara com uma grande sensibilidade artística e uma inteligência aguda que se apresentava como uma ironia fina ante as inúmeras hipocrisias daquela sociedade local. Lia nas entrelinhas todas as personalidades de nosso grupo de amigos e tecia críticas bem humoradas sobre as idiossincrasias de nosso bando. Sebastian assumidamente gostava de meninos, e sua família, de verve liberal, não tinha nenhum problema com isso. Contudo, devido as pequenas dimensões de nossa cidade e as grandes dimensões das línguas preconceituosas de seus habitante, e é claro, suas mentalidades proporcionalmente inversas, ele sofria discriminações diversas até por parte de alguns professores.  Camilo, que começava nesses dias a namorar com Débora, também havia sentido esse mesmo veneno, porque Débora  era negra.  Pensamentos medievais ainda tem, até hoje,  uma força impressionante dentro de algumas sociedades elitistas, e nesse caso, em muitas cidades povoadas por populações de ascendência europeia radicadas na Serra Gaúcha. Apesar de todos esses reveses, éramos uma nova geração que já desejava com mais força derrubar tudo isso e outros muros mais pudessem nos separar. O sistema era mal, mas nossa turma era legal.















 Marina
Marina sempre soube o que queria ser. Seu coração aquariano elevava sua alma acima das tempestades que se abatiam sobre ela. Coisas que para mim seriam uma tragédia sem moral nenhuma em sua evoluída alquimia interna transformavam-se  em lições. Ela parecia estar sempre um passo a minha frente. Na verdade, um passo na frente de todos.  Uma amizade sincera e uma grande sintonia espiritual brotou entre nós desde o dia em que fomos apresentados por Isabelle. Marina já tinha passado por muita  coisas em função da sua gravidez precoce naquele lugar preconceituoso e tinha muito a ensinar. Mas não falava como quem desse   lições de moral. Era sempre leve e precisa nas suas orientações, que normalmente pareciam mais piadas que conselhos. Também era diferente de outras meninas de sua idade. Havia deixado muito de sua vaidade pra trás durante a gravidez e depois disso adotado posturas mais sóbrias diante da vida. Vestia-se bem ,  mas sem deslumbramentos. Seu jeito punk rock de ser, com o cabelo raspado e as camisas de bandas me encantava. Juntos passávamos horas fumando maconha, ouvindo Chico Buarque e falando de política. Ela naturalmente dominava melhor ambos os assuntos. Nossa amizade sobreviveu durante diversos relacionamentos amorosos que tivemos com outras pessoas e grande parte do que sou formou-se em nossas conversas.
Sebastian
Sebastian esbanjava toda confiança que Leão lhe dera. Tirava de letra todo esse buliyng de que era vítima e divertia a todos nós com inteligentes piadas sobre as mediocridades de toda a gente tacanha daquele lugar. Ele lia muito e sobre muita coisa e isso logo nos aproximou. Tínhamos por herói comum o grande médico revolucionário argentino Ernesto Che Guevara, assim como uma grande admiração pela poesia espontânea e precisa do paranaense Paulo Leminski. Matávamos algumas aulas pra tomar cerveja nos bares vizinhos da escola enquanto conversávamos sobre poesia, política, relacionamentos, entre outros interesses. Sebastian tornou-se em pouco tempo mais um grande amigo. Compusemos algumas canções e dividimos alguns grandes momentos juntos. Nossa inesperada amizade me ajudou a enxergar a vida e o nosso tempo por ângulos até então inéditos para mim. Consagrei-lhe um lugar de honra em meu coração e até hoje conheço poucos sujeitos tão leais e desapegados quando esse meu bravo camarada.




O último ano
O ano passado, nosso penúltimo na escola tinha sido um tempo maravilhoso e o atual, nosso último seguia sua beleza, e tornava-o ainda mais intenso. Embora pouco conversássemos  sobre os próximos tempos, todos sabíamos que os ventos da mudança já haviam começado a soprar. Isabelle e eu seguíamos nosso namoro mesmo contrariando os seus pais, que não queriam ninguém sem grana namorando sua princesa. Marina e eu passávamos muitas tardes bebendo, vinho ou chimarrão, falando de política ou de música e afinando os laços de nossa amizade. Ela era de longe a menina com quem mais eu me afinava, e desconfio que durante algum tempo,  nutriu sentimentos românticos a meu respeito, embora sempre se contivesse por conta de sua amizade com Isabelle. Isabelle era mais alguém que idealizei e que constantemente adaptava para que tudo que ela fizesse coubesse  na minha fantasia.  No fundo ela era fútil e egoísta, e embora intuitivamente eu soubesse disso,  construía o que fosse necessário para manter para mim mesmo a imagem que queria ver . Nossa banda já tocava apenas de vez em quando e não tínhamos mais nenhuma ilusão a seu respeito. Eu continuava escrevendo solitariamente minhas canções  e dividia algumas delas apenas com Príamus e com Heitor. A partida de Camilo para a Baía quebrou algo que nem sabíamos mas que funcionava como liga em nosso relacionamento. Os contos de fada nos ensinaram , obviamente errado, desde a infância de que o que é bom e vale a pena deveria durar pra sempre e nós aceitamos isso como verdade. Assim, temos grande dificuldade com finais e despedidas. Seríamos mais felizes se aprendêssemos a contemplar os relacionamentos como períodos de construção e encontro. Momentos em que encontramos outra alma para construir em conjunto algo que vai transformar a todos e que depois naturalmente partiremos para outras grandes construções. O fato é que não é assim que encaramos a vida. Lamentamos profundamente o que acabou mesmo que saibamos que o fim é necessário para o recomeço. Somos grandes estátuas de sal, de saudade. E pra esse fim todos tem seu estilo pessoal. Isabelle saiu com uma festa de despedida com muitos balões e lágrimas. Príamus organizou um grande ritual e uma fogueira no bosque da propriedade de sua família onde avisou a todos que partiria para Porto Alegre passar uns dias e que depois faria o Caminho de Santiago;  iria a Índia e seguiria por outras peregrinações espiritualistas pelo mundo.  Mas disse que ficássemos tranquilos pois ele voltaria antes do seu derradeira ascensão às dimensões mais sutis. Camilo arrumou uma briga com alguns playboys do vilarejo vizinho, comeu a noiva de um deles que era filha de um desembargador e mandou uma foto para o rapaz.  Sumiu tres dias e depois me mandou um cartão postal dizendo que foi trabalhar na Bahia por uns tempos. Foi o jeito dele de dizer adeus. Heitor marcou um jantar com a família num restaurante, me convidou,  mas eu não fui. Estava sem saco pra cerimônias. Fui tomar um ultimo garrafão de vinho a noite com Marina na ponte. No dia seguinte ela iria para Porto alegre fazer direito na UFRGS. Havia passado no ultimo vestibular e recentemente sido chamada. A noite estava com uma temperatura agradável. Conversamos sobre tudo. Ela disse que sua filha ficaria com os pais,  que iriam junto no mês seguinte para POA. Assim todos ficariam morando lá e não voltariam mais pra cidade, mas que eu poderia visitá-la sempre que quisesse. Bebemos demais, quase nos beijamos, mas no fim apenas adormecemos abraçados ali no gramado. Acordei ali sozinho e com um pequeno cartão com o endereço do local onde ela iria morar uns dias com uma tia até achar um local definitivo. Coloquei no meio de um livro do Charles Kiefer que ela havia me emprestado. Foi bom ela ir antes que eu acordasse. Como disse  Humberto Guessinguer numa canção que sempre escutávamos juntos,  é sempre mais difícil dizer adeus quando não há nada mais pra se dizer.





 Meus 20 e poucos anos
Passar a infância e a adolescência aqui na Serra Gaúcha, foi uma experiência encantadora para todos meus sentidos, e me proporcionou outras grandes experiências que só quem mora longe o bastante das capitais terá. Contudo, o tempo passava depressa e nossa cidade, além da  formação que uma escola particular católica pode fornecer a nível de ensino médio, não dispunha de grandes recursos para a seqüência de nossos estudos. As oportunidades profissionais aqui também não iam muito além de trabalhar nas terras do pai, ou como no meu caso, se ele não as tivesse,  trabalhar para alguém que as possuísse. Assim, após a formatura no ensino médio, vi um a um todos os meus amigos indo estudar em Porto Alegre e talvez por lá ficar. Nos primeiros meses nos falávamos por mensagens em redes sociais e telefonemas quase todos os dias,  mas com o tempo nossa vidas ficaram distantes demais, os assuntos daqui provavelmente não interessavam mais a meus bons amigos da metrópole e deixamos que o tempo nos afastasse completamente.
Eu,  sem grana nem iniciativa pra fazer isso fiquei ao lado do meu pai e do meu irmão mais velho consertando arados para os proprietários de terra da região. Meu irmão Camilo havia viajado para trabalhar com caminhões no nordeste um ano antes. Passado um ano de tudo isso, meus sonhos eu murchávamos  um pouco mais a cada dia. De vez em quando eu ia a Caxias do Sul sozinho assistir algum filme no cinema. Na volta passava na casa de Francisco, pra tomar um chimarrão, tocar uma viola e lembrar bons tempos. Na última visita que lhe fiz ele me disse que recebeu uma proposta pra acompanhar o Kleiton e Kledir  como guitarrista numa turnê nacional que os dois fariam. Desejei-lhe sorte, dei um grande abraço no velho amigo e nunca mais nos vimos. Quando cheguei em casa naquela noite, depois de mais de um ano, minha mãe disse que Isabelle me ligou e que precisava falar comigo mas não deixou nenhum telefone. Fiquei o resto daquela noite esperando um retorno. Depois o resto daquela semana e depois o resto do mês. Depois deixei de esperar.
Era uma sábado, após um dia longo de trabalho, quando as luzes do vilarejo estavam já todas baixas e a fumaça saia melancolicamente por aquelas chaminés, que testemunharam minha vida até ali,  que passei n abodega do seu Genésio, pedi-lhe um vinho daqueles produzidos ali nas terras do pai de Heitor, e sai comer um pouco de poeira daquela noite quente, que por ser ainda inverno certamente antecedia a chuva que devia chegar ainda antes do amanhecer. Sentei junto a ponte do riacho com o violão e a lua cheia no céu. Abri o vinho e uma carteira de Gudang Garam, que Príamus comprou em POA e me enviou pelo correio um mês desses. Bebi à solidão e aos meus bons amigos e decidi que já era tempo de eu pegar a estrada em qualquer direção pra fazer vento ou história.
Vou pra Porto Alegre, tchau! (2004)

A  minha  chegada na capital foi discreta e sem grandes pretensões. Precisava de um emprego. A grana que juntei nos últimos meses no interior me garantia não muito mais que um mês de sobrevivência por aqui. Não sabia se encontraria meus amigos com facilidade aqui e nem em que situação estariam.  Tinha  perdido o contato com quase todos. Mas vim decidido a fazer o que fosse necessário para não voltar. Tudo lá era nostálgico demais pra que eu pudesse me mover pra qualquer lado. Não tinha nada mais pra mim lá.
Cheguei em Porto Alegre numa sexta feira nublada, às vésperas de fim de semana num mês de inverno. Andei um pouco da rodoviária ao Centro da cidade. Eram 17 h mas a noite já caía  por conta do dia chuvoso . Precisava encontrar logo um local pra ficar que não custasse muito caro. Parei na primeira placa da Rua Voluntários da Pátria em que piscava em néon a palavra Hotel. O local era um muquifo e a área externa evidentemente uma rua de prostituição, mas pouco me importava. Precisava só de uma cama limpa. Acho que não foi exatamente isso que encontrei mas caí de cansaço com roupas, mala e tudo na cama até sentir o sol daquelas janelas sem cortina esquentar meu rosto. Foi a primeira noite, distante de tudo o que passou. A primeira noite de uma nova vida que eu não fazia a menor ideia do que seria. E era justamente essa insegurança que me enchia de entusiasmo, sonhos e ilusões que encantaram meus primeiros tempos na capital.
No dia seguinte procurei um apartamento pequeno ali mesmo pelo centro que também fosse adequado ao meu modesto orçamento. Achei um simples,  mas limpo ali pela região da cidade baixa pra passar mais alguns dias e conseguir falar com alguém e começar a trabalhar. Tentei ligar para todos os números dos amigos que tinham vindo pra cá,  mas todos deram foram da área de cobertura da operadora de celular. Na certa todos já tinham  trocado seus números. Também tinha pouca relação com seus parentes que ficaram na Serra. Além disso,  todos eles me achavam um fudido e dificilmente me passariam o telefone de seus promissores filhos, pra que eu fosse atrapalhar suas promissoras vidas. Assim, me concentrei em procurar trabalho.






Uma bailarina suja de óleo diesel
Porto Alegre, como muitas cidades grandes, é o palco dos grandes  contrastes da era moderna. Os signos  da tecnologia nos painéis eletrônicos de led, sinais de trânsito com inteligência artificial,  ônibus com ar condicionado e sinal wi-fi convivem com a miséria dos muros pichados pela ignorância, com os cheiros das sarjetas fétidas onde dormem as, mulheres, as crianças e os homens que não vão comer hoje o pão que não faltava a nenhum ser vivo de civilizações já extintas. Um vendedor ambulante de poesias passa e por R$ 2, 00 me vende um cartão anônimo ,  com uma sorte igual a um biscoito chinês. O cartão diz, sei lá se como advertência ou profecia:
“A lixa grossa da vida...vai ralar teu couro...
Vai moer o ferro, até que vire ouro.”
Fique, pensando,  quantos outros com a mesma frase terá ele vendido.   E quantas daquelas frases atravessaram   filtros mentais e tornaram-se vírus inconscientes do pensamento.




O reencontro
Depois de um ano de solidão e encantamento com Porto Alegre, quando me encontrava mais longe que nunca do passado ele finalmente me procura. Estava nos sebos sob o viaduto da Otávio Borges, procurando uma cópia do Dark Side of the Moon, do Pink Floyd em vinil, já que acabara de compra uma vitrola e queria ouvir tudo que gostava novamente agora com a densidade mágica que o vinil conferia a qualquer som. Não foi difícil encontrar um nas prateleiras. Aproveitei e procurei outra coisa quando ouvi no fundo da loja uma voz familiar. Atrás de uma prateleira de discos de música clássica estava ali em carne, osso e uma grande cabeleira, meu amigo Príamus, explicando para o vendedor que Bach nos permitia uma conexão vibratória com a consciência  de Cristo e de outros grandes mestres, especialmente em sua obra “Paixão segundo São Mateus”.
- E aí cara, ainda não ascendeu dessa dimensão??? – Gritei abrindo os braços.
-Seu merda!!! O que faz aqui?? De que dimensão você apareceu?? – Disse Príamus,  vindo ao meu encontro para um longo abraço.
Ficamos ali dois minutos sem desfazer-se daquele abraço como se tivéssemos  nos encontrando em outra vida. E de certa  forma era isso mesmo.
- Estou aqui há mais de um ano, cara. Mas sua mãe me disse que você não usava telefone e que também pouco enviava notícias e sempre de endereços diferentes. – Reclamei com ele.
- É...não estava afim de ser encontrado mesmo. Mas que bom que você está aqui. E tenho certeza de que se nos encontramos agora é porque era necessário. Então vem, vou pagar os discos e vamos lá no meu ap. tomar umas cervejas e colocar a conversa em dia.
Saímos dali eufóricos os dois e com a naturalidade de quem parecia ter se visto no dia anterior. Príamus alugava um apartamento ali perto, na rua Demétrio Ribeiro. Subimos lá com uma dúzia de cervejas e colocamos o disco que eu tinha comprado na vitrola dele.
- E o resto do nosso povo?? Tem notícias?? Perguntei curiosíssimo.
- Sim, sei como encontrá-los. Mais tarde vamos vê-los, mas agora quero saber de você. Achei que nunca o veria fora daquela cidadezinha. – Responde Príamus,  tentando controlar toda minha evidente ansiedade.
Contei pra ele que tinha chegado em Porto há mais ou menos um ano e que desde então trabalhava num bar onde as vezes também fazia um som, que morava ali perto dele e que tinha começado o curso de história mas que não tinha muitos amigos. Expliquei que minha diversão nas horas de folga  era procurar livros e discos pela região central da cidade e as vezes tomar um café ou um Chopp sozinho na área de fumantes do café Majestic, na Casa de Cultura Mario Quintana. Brinquei que as vezes fazia umas parcerias musicais com o poeta quando esse andava por lá atraído pela fumaça dos cigarros. Ele me contou vagamente de suas viagens a Índia, sobre o caminho de Santiago e sobre sua busca pela pedra filosofal. Disse que depois me falaria mais sobre tudo,  mas que naquele momentos tínhamos uma festa pra fazer na casa de Marina.
- Não acredito, agora?? Falei em êxtase e já meio bêbado.
- Vamos, é aqui perto. – Me falou Príamus me puxando pelo casaco enquanto pegava sua capa de chuva preta.
Chegamos no ap. de Marina, onde estavam Sebastian, Débora, a ex namorada de Camilo, além de Carlos e do Carioca, dois amigos deles de Porto Alegre. Sebastiam e Marina grudaram-se no meu pescoço enquanto censuravam Príamus por não se deixar encontrar e o acusavam de me manter escondido só pra ele. Depois começamos a colocar as novidades em dia, mas ainda havia ali , naquela sala,  um certo constrangimento próprio da distância, que não havíamos quebrado até então.
Uma prece aos novos Deuses        
Todos estavam sentados na sala do  apartamento aguardando o jantar , quando aquela voz do banheiro faz todos calarem pra apreciar a volta de Príamus, o herege, numa sublime e irônica oração sobre a mudança dos tempos.
- Oh grande Google... Oh senhores da máquina.... muito grato sou por tudo que não tínhamos nos anos 90 ....pela abundante oferta de pornografia gratuita...e pela invenção do celular que nos permite, sem levantar suspeitas, entrar no banheiro e bater uma punheta ...grato sou ...grato  sou...grato sou pela tecnologia que me permite sem visitar sebo nenhum ... enquanto cago ...conseguir ouvir um álbum raro do Lula Cortes sem gastar um centavo nem sujar o álbum de merda. Obrigado, amém!
 A gargalhada geral baniu do ambiente qualquer clima estranho que ocorre nos reencontros de gente que ficou muito tempo sem se ver. De repente, nos reconhecemos, éramos todos os mesmos de outro tempo.




 O signo da traição
Após mais algumas cervejas e com o gelo já quebrado, dedicamos a noite a relembrar as aventuras e desventuras de nossa profícua adolescência na Serra Gaúcha. Ouvimos todos os discos, falamos de todos os políticos e a sintonia que sempre tivemos tinha voltado como se não houvesse passado mais  que uma semana da última vez que havíamos nos visto. Quase amanhecia o dia e eu não aguentava mais de curiosidade de saber onde andava o Heitor e principalmente Isabelle.
- E aí gente, porque o Heitor e a Isabelle não estão aqui? – Perguntei no tom mais ingênuo possível.
Pressenti no silêncio constrangedor de todos que talvez não quisesse ouvir a resposta de minha pergunta, mas era tarde demais para desistir da resposta.
- Cara. – Disse Príamus, diante da reticência dos demais – Isabelle e Heitor casaram-se e esperam um bebê.
- Que??? – Retruquei incrédulo e como se tivesse ouvido mal.
- Sabíamos  que você não ia aceitar bem a notícia e por isso estávamos evitando te contar – Justificou-se Marina, tentando salvar a noite que pra mim havia terminado.
Disfarcei com palavras o meu desgosto que tinha ficado evidente pra todos nas expressões do meu rosto. Disse que entendia a situação e que apenas fiquei surpreso por nunca imaginar qualquer relação entre os dois. Eles me explicaram que também não aprovaram esta relação dos dois e que Isabelle havia tentado me contar porque eles a condenaram. Disseram que não se relacionam mais com eles e que Isabelle aproximou-se dele porque ele havia ficado rico com uma empresa de desenvolvimento de softwares, que tinha montado e que a família dela fez gosto da união. Enfim, passaram meia hora apresentando-me desculpas para os dois e para eles mesmos. Ainda sem esquecer eu quis mudar de assunto.
- E você, Marina? O que tem feito? Como está a pequena Marcela? – Perguntei-lhe procurando sair do centro daquela roda.
Marina me contou que Marcela morava com ela, que estava muito bem e que hoje estavam com seus pais,  mas que logo eu iria revê-la. Seguimos durante mais uma hora tentando desfazer-se do clima da revelação. Após isso dei adeus a todos e disse que precisava trabalhar amanhã cedo,  mas que logo marcávamos alguma coisa. Trocamos telefones e endereços  e depois fui pra casa procurando no caminho um lugar para uma bebida  que me fizesse esquecer aquela noite.

Príamus  e o novo homem
Após aquela fatídica noite, recolhi-me a minha casca e fiquei ali protegido e me achando vítima do mundo até que um mês depois disso a campainha toca e quando tento ver quem é no olho mágico, encontro apenas um outro olho a tentar ver do outro lado da porta.  Príamus sabia que eu estava recolhido e me escondendo do mundo e deu um tempo pra que eu pudesse curtir meu luto mas achou que agora já era tempo de sair dele.
- Abre aí , seu merda! As cervejas estão esquentando. – Gritou ele batendo com mais força na porta.
-Calma.. calma.. já to indo.... – Respondi tentando dar uma rápida organizada no ambiente antes de abrir.
- Entra aí , eu estava estudando, tenho uma prova de fim de semestre amanhã, mas acho que posso tomar umas cervejas com um velho amigo. – Disse , tentando transparecer tranquilidade.
- Que prova, o caralho, o que vim te dizer você não ia descobrir sozinho nem em duas faculdades. – redarguiu ele no seu típico tom de autoridade moral.
-Então, vamos lá, meu velho! Conte-me sua história. – Disse-lhe, mantendo o tom bem humorado mas sabendo que ele estava disposto a falar sério . E , como sempre gostei de suas histórias e há muito tempo andava sem perspectivas nenhuma, estava também ansioso por ouvi-lo enquanto degustava as cervejas especiais que ele trouxe e enchia o apartamento com fumaça de cigarro de canela.
Ele abriu uma cerveja, acendeu um  Gudang e começou um interessante monólogo, que iniciou com as descobertas espiritualistas que fez na Índia, remontou as suas impressões do caminho de Santiago e de outros roteiros de que tinha feito em busca de autoconhecimento. Ele, contudo,  não caía em sua narrativa numa piegas explicação transcendental do cosmos, e ia envolvendo nas suas recentes teorias um interessante plano,  em que a evolução e ascensão pessoal de cada ser estava intimamente ligada a história da humanidade e  ao compromisso que tínhamos com essa. 
- Che proclamava o novo homem, dizia que o trabalho voluntário em prol da humanidade é uma escola criadora de consciência. É sobre essa consciência que vou te falar meu caro amigo....  – Falou-me de pé com o cigarro entre os dedos.
Explicou-me que a humanidade  caminhava rumo a uma sociedade cada vez mais individualista e hedonista, na contramão do desenvolvimento espiritual para o qual todos aqui estamos encarnados. E mesmo que esses problemas sempre existissem em toda história conhecida  da raça humana, especialmente agora, após a revolução industrial e o predomínio absoluto dos interesses do capital sobre toda a atividade humana, essa situação corrompia o necessário equilíbrio das forças opostas do universo e podia ser o inicio de uma grande era de trevas. Falou-me  que trabalhava atualmente para uma organização que atua aqui na América Latina e em outras partes do mundo,  para manter o equilíbrio da consciência universal e impedir retrocessos nas conquistas sociais da humanidade. Disse que chamava-se a Liga dos justos, e que Che Guevara já fizera parte dela.
- Sério, tipo a liga da justiça????kkkk – Interrompi com uma incontrolável gargalhada.
- É ..tudo bem ..o pessoal não foi muito criativo no nome, mas é sério. – Respondeu, aceitando a brincadeira .
Continuou me contando sobre as ações dessa organização, e que encontrara nesse seu trabalho a verdadeira pedra filosofal, que é usada par transformar nosso chumbo, ou  defeitos, falhas humanas, energias densas, em ouro, ou energias sutis, pensamentos livres, atos altruístas. Falou-me que a chave era a expansão da consciência. Condenou-me por estar a li a lamentar uma decepção amorosa com uma burguesinha de merda e não enxergar que a nossa existência só pode ser medida através de uma perspectiva muito maior. Atribuiu minha atitude pequena a manutenção de uma pluralidade de egos que eu e todos os seres humanos  alimentávamos .Afirmou que somente no constante esforço alquímico em transmutar nossas energias densas por energias cada vez mais sutis, a cada novo dia, a cada nova vida, nas muitas vidas que podemos ter  em uma só, e a partir da compreensão de que estamos aqui para sempre e para sempre evoluir é que podemos entender o quanto as vezes somos tolos, levianos , mesquinhos e também o quanto podemos ser grandes se prestarmos atenção as entrelinhas desse caminho.
- Cara, precisamos entender que a história não faz justiça automaticamente e que seu final está muito além do que imaginamos. Se não agirmos, os tiranos vão agir. Nossos métodos, escolhemos por erros e acertos. Agora, com certeza é muito mais fácil escrever discursos do que diálogos. – Declarou, com um tom teatral de quem narrasse um gran finale.
 Depois disso tudo ele me surpreendeu, recordando e revelando-me que sabia de uma cena antiga onde eu estava sozinho e da qual nunca lhe falei a respeito e nem a ninguém.
- Você viu Baphomet caminhando atrás de você naquele corredor da casa de papai, não viu?? – Inquiriu-me  assertivamente.
- Como você sabe? Você estava lá escondido? – Perguntei assuntado.      Perguntei assustado.
- Não, caro amigo. Intuição. Registros akásicos da natureza. Sonhos. Chame como quiser . Mas eu sabia. Também sabia que quando fosse o momento certo eu voltaria a encontrá-lo e sabia que você precisaria ouvir tudo o que estou lhe dizendo,  pra começar a juntar as peças de sua vida e entender o que eu você faz por aqui. Também sei que não vamos tornar a nos ver por um longo tempo.
- Ué, por que isso cara? – Pergunte-lhe ainda aturdido pela quantidade de informações que ele me trouxe naquele dia.
- Bom, isso é mais simples de responder -  Disse-me rindo – Vou cumprir uma missão para a organização e depois vou para Cuba, onde espero você.
- Mas como é que eu vou pra Cuba? Fazer o que?- Disse-lhe ainda sem entender nada.
- Tenho certeza que vai, meu amigo!! Baphomet está aqui do meu lado me dizendo! – Falou-me rindo,  para provocar-me o pavor.
Entre surpreso e assustado com tantas informações continuei ali ouvindo coisas que nunca soube sobre a miteriosa família Klauss. Falou-me que o velho Edmund, era um grande alquimista, herdeiro de uma longa linhagem e que aquela grande e assombrada mansão da família tinha tantas passagens secretas quanto mistérios e que muitos deles ele mesmo ainda não sabia. Esclareceu-me que as religiões espiritualistas, ao contrário das ordens de católicas baseadas nas tradições judaico cristã ocidentais, compreendem que todos os deuses, símbolos e escrituras sagradas devem ser lidas  a partir de um paradigma capaz de decifrar seus códigos,  e não  com uma visão  linear e literal das narrativas e formas apresentadas por estes. Me deixou uma série de livros emprestados para que eu avançasse meus estudos em conceitos esotéricos do universo. Falou-me mais sobre Baphomet, que ao contrário do que os cristãos pensam não representa necessáriamente a figura do diabo, mas que existem ali naquela imagem arquetípica símbolos diversos sobre a relação da criatura humana com o universo, do macro com o micro cosmos, da terra e do céu da oração que os católicos chamam de pai nosso .Eu, que apesar do limitante conceito de crenças em que fui criado, sempre fui aberto ao mundo, interessei-me muito por tudo aquilo. Pelo esoterismo, pelo novo homem, que via o mundo além dos seus pequenos vieses cotidianos, pela organização dos justos e por como eu iria pra Cuba. Príamus,  recomendou-me paciência, deixou os livros, disse que me mandaria outros materiais pelo correio e que se eu realmente quisesse, a organização me procuraria no tempo certo. Fui ao banheiro mijar e quando voltei encontrei apenas um bilhete que dizia:
- Não esqueça, amigo, conhece-te a ti mesmo.
E essa foi a saída dramática de Príamus, que não poderia me dar tchau como uma pessoa normal. Dias depois procurei-o no AP que ele me levou outro dia e ele já havia entregado o imóvel. O tempo passou e as peças de Príamus se uniam na  minha cabeça e faziam mais sentido a cada livro que eu lia e dia que passava.




Céu de brigadeiro sobre nós.
Passados alguns dias da explosiva visita de Príamus resolvi visitar Marina. Fui direto ao seu apartamento já que no outro dia perdi seu telefone. Ela agora morava  com a pequena Marcela, que já devia ter nesse ano de 2006 entre seis ou sete anos. Marina, que veio para Porto Alegre em 2004, já estava na metade da sua faculdade de direito e fazia estágio num escritório. Nessa época, eu concluía o segundo semestre da faculdade de historia e ainda trabalhava num restaurante onde as vezes tirava mais uma grana tocando uma viola. Cheguei de surpresa aquela noite no apartamento dela, com uma pizza e uma garrafa de vinho debaixo dos braços.
- Meus Deus – Disse ela , sorrindo. – Achei que nunca mais fosse te ver.
Expliquei minha ausência e fui sincero sobre o luto que assumi com a notícia do casamento de Heitor e Isabelle ,mas contei também sobre minhas novas perspectivas. Falei sobre a visita de Príamus e sobre meu recente interesse por assuntos esotéricos, que eu compreendia ser complementar aos meus compromissos políticos e aos meus estudos sobre a história e a humanidade. Achava que eles me conduziam além da superfície dos livros de história e me adicionavam uma consciência superior a da atualmente limitada pela ciência reconhecida. Marina empolgou-se com meu entusiasmo e admitiu não ter me visto tão feliz assim desde a adolescência. Ela estava  especialmente linda aquela noite, e sua serenidade tornava-a  ainda mais bela ao longo dos anos e me fazia especialmente bem naquele tempo. Após a pizza, muita conversa e alguns vinhos não consegui não beijá-la. Na verdade, não sei porque não o fiz antes. Tínhamos tudo a ver um com o outro e era inevitável chegarmos ali. Percorremos o caminho mais longo mais foi bom não usarmos atalhos pra chegar até aqui. Começamos a namorar e seis meses depois decidimos morar juntos. Eu trabalhava a noite, estudava pela manha e a tarde ajudava a cuidar da pequena Marcela que crescia rapidamente. Eram dias incríveis. Eu estava feliz como nunca estive antes. Todos estávamos muito felizes. Sebatian aparecia seguido para nos visitar. A cada mês  Príamus me enviava mais um pacote de livros e fitas que queria que eu estudasse. Recomendava-me escolas com as quais passei a me reunir e a praticar rituais para autoconhecimento. Em 2008 Marina formou-se e abriu seu próprio escritório de direito,  no anos seguinte e eu me formei  e passei num concurso para dar aulas numa escola pública do Estado. Marcela tinha dez anos e o país ia muito bem entre 2009 e 2010, sob a presidência do Partido trabalhista nacional. No ano seguinte ocorreu mais uma eleição e o presidente elegeu sua sucessora do mesmo Partido. As vagas em faculdades publicas  eram acessíveis a maior parte da população jovem, o emprego era considerado pleno no país, as reservas financeiras eram as maiores de todos os tempos, as obras públicas movimentavam a economia de norte a sul do Brasil. A América latina toda crescia e evoluía sob regimes democráticos de esquerda em todo o continente. Mas, mais uma vez interesses perversos nos aguardavam na próxima esquina, decididos a não permitir a evolução de governos populares nessa região do mundo. Os grandes grupos capitalistas não estavam dispostos a reduzir suas assombrosas margens de lucro pagando melhor seus empregados ou oferecendo empréstimos a taxas de juros moderadas. Era a fúria do capital, que não tem nada a ver com sentimentos humanos, buscando formas de atropelar a história e as construções democráticas e o que mais fosse necessário para fazer valer seus nefastos interesses.







Uma noite mal dormida e um país em maus lençóis
Em 2010 o governo trabalhista conseguiu mais uma vez  reeleger sua plataforma desenvolvimentista e manter o pais crescendo apesar de uma grande crise do capitalismo mundial. Neste período aumentavam no Brasil e no mundo os movimentos da juventude contra regimes estabelecidos e contra toda ordem política vigente. No Brasil fenômeno semelhante foi manipulado pela direita para enfraquecer o governo trabalhista. De certa forma essa manobra foi bem sucedida, já que este não obteve nas eleições de 2014 o  mesmo apoio popular  que nos pleitos anteriores, mas, mesmo assim saiu vitorioso. Contudo, a direita nacional, representantes dos interesses de grande s grupos capitalistas não aceitou facilmente mais essa derrota, e articulou através de movimentos sociais de direita, articulações escusas na câmara de deputados e no senado, e maciço investimento nas redes sociais apoiados pela grande mídia, a derrocada do governo popular através de um golpe político que obteve sucesso em 2016. A esquerda, agora expulsa do governo, cometeu no seu caminho alguns erros capitais. Possivelmente, o maior deles tenha sido a escolha de seu vice presidente. Miguel Brenner era um deputadozinho que cresceu no período pós ditadura, militar auxiliando empreiteiras a ganhar obras públicas e depois obtendo apoio destas para reeleger-se e galgar espaços maiores dentro do seu partido, nacionalmente conhecido por agregar lobistas de todos as extirpes e lugares do país. O partido popular entendeu que precisava da força política dessa alcateia pra manter-se no poder e foi por ela traído nesse processo. O tal deputadozinho assumiu a presidência após o impeachment da titular e iniciou no país a aplicação de uma plataforma econômica neoliberal que iniciou por dilacerar o patrimônio público através de privatizações absurdas e segue por atacar direitos e conquistas trabalhistas, reduzir gastos públicos com saúde e educação e desmanchar o Estado em benefício do privado até não sabemos mais quando. O desemprego toma conta do país, os direitos humanos são flagrantemente desrespeitados e, a constituição tornou-se mera formalidade que ratifica os interesses do capital, ou é modificada ao bel prazer de um poder judicial conivente com os desmandos da classe política.
Uma noite acordei a uma hora da manhã com a notícia de quem um aluno da escola onde dei aula estava no hospital porque eu foi  vítima de um grupo de bandidos fãs de um deputado fascista. O garoto andava na rua com uma camiseta vermelha do Che Guevara quando foi abordado pelo intolerante grupo homicida, que bateu nele até que um carro da polícia passa-se, ao que eles fugiram e conseguiram escapar. O garoto ficou três dias em coma. Estes casos estão multiplicando-se no Brasil e não temos qualquer garantia que as crianças voltarão pra casa.
Tudo que é sólido desmancha no ar
Marx já sabia que a sede de poder de Fausto acabaria por fuder a todos nós. Desde cedo ele entendeu que a sanha do capital não seria facilmente contida e que seriam muitas as suas vítimas. Ele  conseguiu inclusive prever a ausência de valores humanos que a circulação do capital disseminaria . Viu a quilômetros de distância que o sagrado seria profanado, que os vendilhões comprariam o templo e os sacerdotes é que seriam expulsos dali. O governo de Miguel Brenner, que chegou a presidência sem votos, através de um golpe parlamentar,  e que agora faz ali o que bem entende, e a contraparte contrariada, que teve seu voto desrespeitado,  não esboça reação,  porque não se entende  como um todo e sim como um indivíduo,  que quer mas não tem poder e tem poder mas não tanta vontade assim. Eis o retrato da modernidade pintado por Marx ,  brilhantemente esboçado por Berman e penosamente sentido por esse país, que sente mas ainda não entende plenamente sua dor. Não entende porque não quer. Não entende porque ela não é real enquanto é do outro, ou enquanto ainda é possível dividi-la com o outro. O garoto que foi espancado pelos fascistas não é meu filho. Dos 60000 jovens mortos em 2016 75% eram negros e eu nem meu filho somos negros. Ufa! A violência contra as mulheres aumenta. Sabemos que os feminicídios notificados aumentaram em 6,% de 2016 para 2017 mas que porra são esses números que não nos dizem nada! O capital conseguiu nos separar do resto da humanidade de tal forma, que só sentimos quando a dor é nossa. Quando arde na nossa pele. E talvez, quiçá, a dor nos una já que o prazer dos passeios no Shopping Center, e de todas ostentações capitalistas no separam como seres humanos. Eu sabia que todos pensavam assim. E pensava no que eu podia fazer.
Passei muitos dias com essa pergunta na cabeça, até que recebi mais um pacote de Príamus, com um convite para conhecer a ordem dos justos mas sem data nem local definido. Ele apenas dizia ter certeza que no tempo certo eu estaria lá presente. Era um  tempo de muitas passeatas e movimentos contra o golpe na democracia, que Miguel Brenner promovia no país. Marina e eu acompanhávamos todos esse movimentos junto com Marcela, que então era adolescente e já entendia os danos que essas políticas entreguistas trariam para o futuro. Estávamos no lado certo da história. Nossa família sentia todos os reveses dessa situação em que o país estava atolada, mas conosco diretamente nada tinha acontecido até o dia em que recebi um telefonema do hospital. Marcela tinha sido atingida por uma bala de borracha, que a polícia militar, à mando do governo golpista, atirou nos manifestantes. Uma dessas atingiu a jovem Marcela na cabeça e quando ela desmaiou ainda bateu a cabeça no meio fio. Estava no hospital ainda inconsciente e eu tive que avisar Marina disso. Fomos desesperados para o hospital onde demoramos para encontrá-la e ter notícias. Eles ainda não sabiam dizer que danos a queda ou a bala poderiam ter causado, mas nos adiantaram que era grave e pediram que aguardássemos. Foram horas de agonia. Às 22 horas em ponto o médico confirmou nossa identificação no corredor e nos informou que a jovem Marcela acabara de falecer,  por conta do traumatismo craniano e do rompimento de uma artéria. Nosso mundo acabou ali e só então entendíamos o quanto todo esse golpe era nocivo para todos nós, brasileiros e seres humanos.











 A ordem dos justos
Ainda não apareceu na história nenhum tirano a prova de balas. É bem verdade que também nenhum justo que resistisse ileso aos seus impactos. Assim, irmãos, partamos do princípio de que somos iguais. Embora a história tenha desde sempre nos dado por fardo heranças malditas, podemos, por direito autoral que temos como seus co escritores, resistir  às canetas ambiciosas dos que pretendem nos escravizar. Assim, somos herdeiros do legado de todos que já lutaram pela liberdade de construir suas próprias histórias, ante a sanha dos que não admitem a igualdade como princípio básico da coexistência humana. Estamos aqui porque escolhemos, ao nosso modo, seguir carregando as bandeiras de Bolívar, de Marx e Engels, de Lênin e Trotski, de Fidel e Guevara, de Brizolla, Marielle e de tantos outros, que muitas vezes preferiram morrer a ficar calados ante as injustiças de um mundo em que o dinheiro corre livre, e o ser humano não. Aqui chegamos porque fomos e somos vítimas de um complexo plano, que manipulam  todas as peças do jogo e que altera suas regras por força do capital que detém. Só existimos dessa forma, com essas convicções porque foram rompidos os limites de todas as cartas, que permitiram o fim da barbárie e o inicio da civilização. Esses documentos, que celebravam os acordos mínimos para que  convivêssemos como seres humanos, e não como as feras que já demonstramos poder ser, foram quebrados. Os termos que nos levaram a acreditar na democracia e na possibilidade de evoluirmos através dela, como sociedade e como seres humanos foram brutalmente violados,  e algo precisa ser feito para que esse sutil equilíbrio seja restabelecido, e para que a raça humana não caminhe para o caos previsto pelas mais tenebrosas obras de ficção. Os ratos que roem esses sagrados papéis escritos com sangue, que constituem nosso código de leis, definitivamente não temem o que está previsto neles. Estes criaram uma rede paralela de existência com buracos por onde vão sempre escapar e multiplicar-se. Diante dessa perspectiva avassaladora, criamos, em meados de 1961, numa reunião entre diversos líderes guerrilheiros,  oriundos de muitos países latino americanos, uma ordem secreta para acompanhar o desenvolvimento das democracias nos países latino americanos e defender esse processo das constantes tentativas de interferência do poder financeiro no seu caminho. Muitos grandes políticos, intelectuais, artistas, professores, guerrilheiros, entre outros, vem desde então apoiando as ações dessa organização. Nossas ações envolvem a formação de quadros para disputar espaços políticos com representantes das grandes corporações financeiras nas esferas democráticas do poder estatal, nas escolas, fábricas, faculdades, igrejas e onde mais quer que haja necessidade de fazê-lo. Mas, desde nossa formação, sabíamos que o dinheiro era capaz de burlar todos os estatutos da ordem democrática, comprando a imprensa ou até mesmo os votos, Portanto deferimos, desde nossa primeira reunião, com a benção de nosso companheiro Ernesto Guevara, que usaríamos de quaisquer expedientes que fossem necessários para que o povo pudesse ter sua vontade assegurada. Até há pouco tempo acompanhávamos apreensivamente e de forma otimista o avanço da democracia nos países da America latina e central,  mas nos últimos anos percebemos que ela vem sendo sistematicamente atropelada pelo poder das elites infiltradas em todas as esferas e níveis do poder público e que portanto, neste momento faz-se necessários outros métodos para conter essas forças, que se não detidas, acabarão por escravizar novamente nosso sofrido povo. Vocês que aqui estão, foram convidados por meio de indicações de outros membros e por estudos que fizemos sobre suas vidas anteriores e são livres para sair pela porta por onde entraram e esquecer o que ouviram, ou para ficar, sabendo que nunca mais terão a vida que tinham antes se optarem por isso. Boa noite, companheiros e desejamos  que suas escolhas tragam paz entre vocês e seus travesseiros.”
Nesse instante as luzes desse local apagaram-se e sumiram dali todos que estavam envolvidos na organização, restando apenas alguns dos desconhecidos que comigo ouviram a palestra e o velho galpão abandonado vazio. Todos foram saindo, tentei conversar com alguns deles que não me deram atenção e foram embora.  Estariam ali, como eu? Ou já faziam parte da organização? Não sei e acho eu nunca vou saber. Saí dali profundamente impressionado,  por aquelas revelações tão profundas acerca do processo histórico brasileiro, da existência real de tal organização de que Príamus havia me falado,  mas que eu levava mais como uma fantasia dele e mais ainda sobre o convite de tomar parte em tal empreitada tão derradeira. Recebi um convite para um grupo de trabalho contra o Golpe enquanto estava no hospital. Queria fazer mais. Queria dar um sentido pra tudo aquilo e de alguma forma fazer valer a morte de Marcela. Se é que isso era possível. Então cheguei ali pela mão de Príamus. Mas como ele sabia que eu  iria? Muitas questões externas e inúmeras outras que nasciam em mim.








 A iniciação
Duas semanas após esse contato fantasma, recebi uma carta oficial da organização, que repetia exatamente as diretrizes do grupo, reiterava o convite para minha participação na Ordem dos Justos e estendia o convite para Marina. A carta nos indicava, de forma codificada,  um endereço e nos deixava claro que nosso comparecimento no local nos colocava de forma irrevogável como membros da ordem e a partir daí sujeitos as suas deliberações. Também deixava evidente que nossas identidades atuais desapareceriam e que teríamos novas vidas a partir de nossa adesão. Marina e eu estávamos mergulhados numa dor tal,  que sabíamos que nada iria extingui-la. Mas concordamos que a luta daria sentido a toda nossa historia e por isso fomos juntos no endereço e no dia e hora marcados. Era um velho pavilhão abandonado,  com iluminação baixa na beira do rio Guaíba. Já estava entardecendo, e como fosse inverno já era escuro. Haviam mais ou menos 10 pessoas no local com o rosto coberto por capuzes e sombras. Fomos colocados sentados em duas cadeiras onde recebemos orientações acerca do que seria nosso trabalho na organização. Estas atividades, na sua maior parte direcionadas a disputa político partidária, mas podiam incluir também tarefas de guerrilha, especialmente nesse momento de nossa história. Estávamos dispostos a tudo que fosse necessário para que mais pessoas não precisassem sentir a dor que sentíamos ali e pra sempre. Ao final da pequena palestra, em espanhol, o representante principal da organização, vindo de Cuba para a ocasião nos perguntou:
-Jura la lealtad a esa organización, comprometida con la preservación de los más nobles valores humanos y con la lucha contra el poder del capital financiero, y en defensa de la democracia. ¿Están dispuestos a llevar su juramento las últimas consecuencias?
- Sim – Respondemos.
Éramos agora membros da Ordem dos justos e logos receberíamos missões. Ao fim do nosso juramento. Todos foram saindo discretamente e sem maiores explicações. Apenas disseram que logo receberíamos orientações. Um deles tirou o capuz e aproximou-se de mim.
- E aí seu bunda mole, há quanto tempo. – Era Camilo, vestido como um guerrilheiro e com uma barba que nem sua mãe o reconheceria.
- Cara,  não acredito. O Príamus colocou você nessa. Você não estava na Bahia ?? – Perguntei tentando entender o que acontecia.
- Não, cara. Na verdade eu coloquei Príamus nessa e depois ele foi atrás de você.  Não posso lhe dizer mais nada agora, mas nos falamos em Cuba. – Explicou-me ele em tom misterioso.
- Porra, mas que historia é essa. Todo mundo dessa organização vai pra Cuba?? Perguntei,  ainda tentando entender.
- Sim, é mais seguro para nós ficarmos  por lá. Hoje mesmo vou cumprir minha missão de dar cabo de um juiz golpista aí e hoje mesmo saio do Brasil. – Continuou Camilo.
- Como assim, dar cabo? –Perguntei, ainda pensando alternativas.
- É o seguinte, maninho, a existência dele está perturbando e mesmo extinguindo, como você sabe,  a existência de muitas pessoas e rompendo com o equilíbrio do sistema democrático construído ao longo de muito tempo com muito esforço. Não podemos aceitar isso e por isso ele recebeu três notificações informando que se não mudasse sua postura nós o eliminaríamos.. Como você sabe, ele apenas reforçou sua segurança pessoal. Nós sempre avisamos o eliminado antes. Normalmente ele não muda de idéia. Bom, você vai saber mais logo adiante. Agora me dá um abraço, e logo nos vemos. - Concluiu Camilo
Dito isso ele deu as costas e ficamos apenas Marina e eu por mais algum tempo  ali naquela bela paisagem apreciando a noite e as luzes distantes no Guaíba e fumando um cigarro no frio. Na manhã seguinte, acordamos com a notícia de que o juiz federal de 1° instância, Renato Moura, foi decapitado e que sua cabeça foi deixada no colo da estátua que fica na frente do plenário do Supremo Tribunal Federal. Era um claro recado aos magistrados. Não haviam suspeitos do crime e todas imagens de câmeras da residência do juiz e arredores que pudessem apontar para um suspeito haviam desaparecido. Foi o que podemos chamar de um crime perfeito. Nós sabíamos bem o que  tinha acontecido, e já tínhamos certeza que as coisas não iam se resolver sem sangue. Também sabíamos  que não fomos nós que demos o primeiro tiro.










Orlando Cienfuegos
Recebemos através de Sebastian, convites para um jantar num barco que navega no Guaíba. O jantar era promovido pela Associação Cultural José Marti, em memória do movimento pela LEGALIDADE, ocasião em que  Brizolla ocupou o palácio do governo Gaúcho , impedindo ou retardando o Golpe militar e garantindo a posse de João Goulart.
Sebastian disse que a galeria, da qual ele era dono, recebeu os convites de forma estranha. Como eram 04 convites, ele resolveu levar Fernando, seu companheiro e achou que nós precisávamos sair um pouco de casa. Aceitamos, já suspeitando que tinha algo a ver com a organização. Estava uma noite muito agradável no dia do evento. Uma embarcação nos aguardava na cais da Usina do Gasômetro. Sentamos numa mesa que estava reservada para nós e desfrutamos de um delicioso jantar,  enquanto ouvíamos alguns depoimentos de pessoas que de alguma forma participaram no episódio da legalidade e também de estudiosos e professores convidados para a ocasião. Tomamos um vinho e interagimos com o musico da noite. A certa altura apresentou-se a nós um certo Juan Gonzáles, puxando conversa acerca das familiaridades  entre a música uruguaia e os ritmos gaúchos. Este senhor, que aparentava mais de 70 anos disse ter sido vizinho e amigo de Brizolla, porquanto fosse vizinho do mesmo em Durazno , no Uruguai. Nos convidou para visita-lo lá mesmo e disse que não aceitava não como resposta. Disse que naquele fim de semana mesmo estava indo para lá e que gostaria que fossemos com ele. A noite continuou regada a um bom vinho e nosso novo amigo nos premiou com muitas histórias . Sexta feira recebemos pela manhã,  Mariana e eu e também Fernando e Sebastian a orientação de que estivéssemos prontos para passar  4 dias na fazenda de Juan, pois seu carro viria nos buscar as 16 horas, e acrescentou que não nos preocupássemos com a volta, pois já estava tudo organizado. Fernando e Sebastian acharam tudo muito estranho mas eu acalmei eles por que já estava me acostumando com as estranhezas da organização. Assim se deu. Fomos a Durazno, conhecemos sua maravilhosa fazenda. Comemos muito churrasco uruguaio, tomamos grandes vinhos e passamos um belo fim de semana entre amigos. Na despedida Juan abraçou-nos, deu-nos boas vindas o Ordem e nos entregou envelopes que pediu só fossem abertos quando estivéssemos em casa. Assim foi feito. Sebastian e Fernando não entenderam nada disso, mas também não quiseram nos constranger. Quando chegamos em casa, abrimos curiosíssimos nossos envelopes. Havia nos dois envelopes,  orientações para que nos despedíssemos de todos amigos em familiares, que só poderiam nos ver novamente, se assim desejassem, em território cubano. Haviam novos documentos e novos passaportes com nossos novos nomes e passagens para a ilha caribenha com data para chegarmos e local para ficarmos.  Marina passaria a chamar-se Olivia Perez Cienfuegos e meu novo nome era Orlando Cíenfuegos.  Chegamos em metade de 2017. Ficamos hospedados em Santiago de Cuba, região litorânea no sudeste da ilha. Ali recebemos desde nossa chegada, diariamente, uma série de treinamentos que iam desde pratica de artes marciais, uso de armas, língua espanhola, até informações confidenciais sobre relações entre autoridades políticas de diversas países. Após um ano de treinamento intensivo, fui convocado pelo conselho da Ordem a cumprir uma missão no Brasil. Eu devia eliminar Miguel Brenner, que ameaçava décadas de avanço democrático da nação e já havia sido avisado em três ocasiões que se não saísse do cargo morreria. Ignorou a mensagem e reforçou sua segurança. Miguel Brenner estaria dia 23 de setembro de 2018 numa Feira Internacional de Tecnologia em Novo Hamburgo, cidade próxima a Porto Alegre.  Nessa ocasião ele estaria junto com o seu candidato a presidência, que concorreria  nesse ano. Eu deveria estar ali em local já definido, no meio de um bosque a cem metros do palco onde ocorreria a solenidade. Minha fuga já estava organizada e minha missão era puxar o gatilho e deixar para a imprensa uma fita anunciando que quem desrespeitasse a democracia e a ordem definida nas urnas, iria  cair, um a um, todos os cachorros que trabalhavam para o capital e que haviam vendido sua pátria e as causas populares. Marina ficou apreensiva com a notícia, mas sabia que tínhamos um juramento e uma missão. Ela me aguardaria ali na ilha até que eu retornasse do Brasil.














Chuva
Agora que você ouviu minha história, sabe quem foram meus carrascos, de onde eu vim e para onde estou indo, provavelmente você sabe que eu sou. Mas a questão, na verdade, é,  quem você é?  E agora, eu estou a um tiro de mudar a historia, com o dedo no gatilho e o desgraçado do Miguel Brenner na mira. Sempre me perguntei o que faria alguém, que chegou até aqui onde estou,  vacilar e acho que agora sei. Não é medo de ser pego , porque depois que te tiram uma parte que você amava muito você não consegue imaginar que alguém possa te causar dor maior que essa. Também não seria por piedade da vítima, pois o golpe que esse desgraçado promoveu acabou com a vida de muita gente muito melhor do que ele, como minha sonhadora Marcela. Acho que na verdade  tive por um instante uma dúvida. Não estariam eles, os capitalistas certos e nós errados. Eu não estaria na verdade matando aqui alguém, que de qualquer forma, ou presenteado por qualquer direito divino seja de fato maior do que eu.  Não seria exatamente assim que o mundo devia ser e nesse caso nossa resistência inútil?
Essa dúvida me atacou profundamente por alguns segundos enquanto o tive na mira com dedo no gatilho até que, a primeira gota caiu. Começou a chover, e o universo se realinhou. Agora somos todos iguais.