Meus bons amigos
Nota do autor
Seguem, nas próximas páginas, algumas de minhas impressões
pessoais acerca do período em que
vivemos. Literariamente, fico em dúvida em classificar essa minha primeira
aventura pela literatura de ficção, como um conto extenso ou um romance curto.
Deixo assim a cargo do leitor essa definição, bem como todos os demais
sentimentos, de qualquer ordem, que minhas palavras e pensamentos possam gerar,
tanto no céu como na terra. Amém.
Diônata Matos – Agosto de 2018
Prefácio
Minha poesia é pura dor
Mas não atentem para isso
Afinal
O que é a dor senão conseqüência da poesia?
Impressa na vida
Gerada do amor
Nascido no tempo
E com ele voltando ao papel.
E analisando bem cada parte
Como a vida imita a
arte
Aqui se faz
E aqui se pinta a tela.
O último cigarro
Estou a minutos de dar um passo que vai mudar pra sempre toda
a minha vida e possivelmente toda história. Estou apavorado. Toda minha vida
passando num flash e minhas certezas esfacelando-se a cada segundo.
Ninguém chega aqui porque quer. Todos que chegaram nesse
lugar onde estou perderam-se de alguma forma nessa noite estranha e cheia de
esquinas e, após seu transe, acordaram nesse lugar profundo e escuro. Bobagem
pensar que apenas nós mesmos somos responsáveis por fuder nossa própria vida. Nossa lista de carrascos é sempre maior
do que supomos e freqüentemente tem ali quem nunca imaginamos. Já a culpa, aquela velha senhora católica, de
moral judaico cristã ocidental, que
adora sentar em nossos ombros e nos conduzir à igrejas ou aos consultórios
psiquiátricos, essa entidade imaginária, sim, é toda nossa. E só nesse dia, quando
estiver apenas você, ela e a esperança de encontrar na caixa um último palito
de fósforo, para fumar seu último cigarro dessa noite imunda, é que você vai
conhecer a si mesmo e saber exatamente porque está aqui.
Eu
Dentro de mim há um
lago
Um rio calmo e um mar
revolto
Por vezes apenas nado
e em outras
Mergulho atrás de um
porto.
O teu rosto me
enternece
O teu sorriso me
alimenta
Teu corpo me incendeia
E mesmo assim não me
esquenta.
Eu sou cheio de
detalhes
De ditados ... deduções
Minhas mãos cheias de
dedos
E segundas intenções
Sou confuso ...
solitário
Companheiro de viagem
Sou profundo ... Sou
tão puro
Eu sou pura sacanagem.
Já dizia algum profeta
em pensamentos obscuros
Se eu penso: Logo
existo
Logo existe um lado
escuro.
Eu não presto ... eu
confesso
E detesto admitir
Mas você tinha razão
em não querer alguém assim.
Deixando o pago
Chovia na tarde fria daquela cidade, como deveria sempre acontecer nas
despedidas.
Definitivamente, gosto de dias chuvosos. No
verão ou no inverno. A chuva modifica as paisagens e também as pessoas. O sol
tem qualquer coisa que nos endurece. Ele faz o mesmo com a terra. No sol tudo é
certeza, estabilidade. Só quando o temporal se arma, e parece que o mundo vai
acabar é que as pessoas percebem como são frágeis e assim se reconhecem no
outro, seu semelhante. Quando o céu desaba pouco importam nossas crenças,
diferenças sociais ou bancárias. Quando
chove somo todos iguais. Deve ter uma marca assim em nosso DNA, afinal
descendemos de caçadores, coletores, agricultores. O sol os chamava para a
luta, para o trabalho. A chuva os deixava sem opção senão ficar “ aconchegados”
com a família curtindo o som da água até que ela passasse. Ou, agora falando
sobre mim, deve ter a ver com o eterno desejo canceriano de se esconder numa
casaca, ou qualquer lugar protegido. Ouvindo a chuva debaixo de algum telhado
tenho a sensação de proteção; sentindo-a molhar meu rosto enquanto ando pela
rua, de liberdade. Em dias de chuva, desde o Charles Kiefer, também tem poesia.
Sair da cidade que nascemos e crescemos é sempre cortar mais
uma vez um cordão umbilical. É sempre uma ruptura com tudo que vivemos ali, e sem rupturas não há futuro, tudo para , o
que talvez seja a única e verdadeira morte.
Enquanto caminhava até a rodoviária, cada pedra tentava me parar, lembrar
de alguma história que escrevi nesses anos de vida por aqui. Algumas pareciam
tentar me demover da ideia da partida. O passado é sempre uma porta muito
difícil de fechar, mas a passagem rumo a meu destino eu já havia comprado há
muito tempo.
Príamus
Acabava de passar pela
Praça da Bíblia, onde eu e Príamus
costumávamos passar longas tardes debaixo da figueira, tomando vinhos, tocando
violão e fumando alguma coisa. Príamus
era um cara estranho. Mas pra mim, estranho, sempre foi o signo de novos
mundos. Tudo que se repete tende a
morder o próprio rabo eternamente. Talvez
por isso tenhamos nos tornado tão próximos . Ele adorava os dias frios e
nublados, como eu, e vestia-se de preto com tons de cinza escuro. Mesmo quando
esquentava e o sol aparecia, se precisasse sair na rua, seria de preto e nesse
caso de chapéu e óculos escuros. Sempre rolou um sarro com o estilão dele na
escola, mas como ele não mostrava muito os dentes pra ninguém, o pessoal não ia
muito longe nas brincadeiras, por não ter a menor ideia do que ele era capaz. Pra
mim era uma diversão assisti-lo. O cara era na verdade um grande ator, talento
que iria segui-lo até hoje. E toda aquela explosão de sensibilidade, expressa num
personagem que ele criou, naturalmente preenchia de medo o coração de uns
meninos sem imaginação e de admiração outros com muita imaginação. Ninguém
sabia se ele era um psicopata, um bruxo, um ateu ou se simplesmente tinha
preferencias musicais excêntricas.
A escola onde estudávamos era católica e por
isso conservadora, ou o contrário.
Existia há mais de cem anos antes deste tempo naquele mesmo lugar. Por essa
longevidade já haviam estudado por ali os pais de muitos de meus colegas. Não
era o meu caso, até porque a escola era particular e as mensalidades eram
demasiadas altas para as possibilidades financeiras da minha família. Consegui
estudar ali graças a uma bolsa parcial de estudos que me proporcionava a
convivência com colegas descolados da minha realidade social. Príamus, por
exemplo, vivia há anos luz das carências
materiais que me eram tão familiares. Desde o iogurte que aparecia de vez em
quando aos restos de sabonete que se uniam para a reutilização, tão familiares
a quem não nasceu com grana. Dividir quarto com mais dois irmãos, passar roupas
para os mais novos enquanto assume as vestimentas herdadas dos mais velhos. E
por aí vai a longa lista de hábitos peculiares e correntes nas proximidades das
bases da pirâmide social. Mas, essa não era a realidade de Príamus. Ele vivia uma grande casa, encravada num dos muitos
terrenos/bosques que os ricos da cidade ocupavam . Porém, enquanto a maior
parte desse povo da elite buscava seguir tendências arquitetônicas modernas e
seguir as últimas tendências das modernas construções das grandes cidades, o
imenso casarão da família Klaus permanecia com os traços da arquitetura inglesa
do século XVIII, um verdadeiro casarão de bruxas. Todo o aquele aspecto visual
daquela residência alimentava a lenda do próprio Príamus ,e ajudava a tornar
ainda mais mágica a atmosfera daquela pequena cidade da Serra Gaúcha. Com
certeza nunca vou esquecer a primeira vez que entrei naquele lugar. Eu tinha
uns doze anos quando comecei a estudar com Príamus. Logo ficamos amigos.
Possivelmente nos uniu o desprezo dos outros em relação a nós. Eu, por ser
pobre, e Príamus, por ser exótico para os padrões locais. Certo dia, ao montar um grupo de
trabalho, Príamus e eu, pra variar acabamos sobrando e sendo a única opção um
do outro. Ele sugeriu que fizéssemos o trabalho na sua casa, e eu, tomado de
medo e curiosidade e tentando não demonstrar nenhum dos dois fingi pouco caso e
concordei. Normalmente, conhecer de perto aquela casa, seria o fim das ilusões, que eu e todas as
crianças da cidade criamos vendo aquele “mausoléu” à distância, mas não foi. Na verdade, foi o início de uma relação de
encanto que nunca terminou. Ainda acho que aquela casa tem lugares que não
suspeito , que dão para dimensões que desconfio menos ainda existirem.
Naquele mesmo tempo,
em nosso pacato povoado lendas e histórias proliferavam e mantinham o tédio distante
daquele lugar distante demais das capitais.
No caminho, entre a minha casa e a de Príamus, por uma estrada, metade
asfaltada e metade de chão batido, ficava a casa do velho general Bernardo
Góis, que participou de uma grande revolução do nosso Estado e que de grande
herói da cidade passou a ilustre fantasma assombrador da região. Os meninos diziam
que o velho general passava por ali nas noites de neblina pra levar jovens pra
sua guerra. Assim explicou-se o sumiço de um jovem em outras épocas desse
lugar. Balelas ou não, vez ou outra,
quando eu retornava da casa de Príamus andando a pé, ouvia passos, galhos
quebrando e quase sentia o bafo do velho general no meu pescoço. Além disso, iluminação
pública nunca fora prioridade em município tão pequeno e quase sem incidentes
criminais. Príamus debochava de tais histórias, não porque não acreditasse nos
fenômenos, mas porque os via sob uma perspectiva menos estreita que nossa então
visão católica do mundo.
Além da “estranheza” que causávamos às outras pessoas não
tínhamos lá tanto em comum, Príamus e eu. Príamus era um típico aquariano com
visões de vanguarda sobre o mundo. Enxergava tudo que acontecia quilômetros
além daquele vilarejo. Urano orbitava seu mundo e não deixava que seu traseiro
aceitasse qualquer conforto que o fizesse parar. E eu, apesar de meus
cancerianos dilemas internos e das dificuldades que sempre tive em mudar sempre
me deixei levar pelas revoluções que Príamus adotava e, uma vez nelas, me
entregava profundamente a essas causas. Isso sempre foi assim. Não que
abandonasse a segurança, pelo contrário, Príamus, nesse caso, era a âncora que eu precisava. Dificilmente tínhamos
qualquer briga mais séria e fomos inseparáveis nesses primeiros anos de nossa
adolescência. Fala-se sobre todo relacionamento ser formado a partir de uma
relação complementar composta por dois seres com características fundamentais
diversas, numa simbiótica sobrevivência de opostos, mas acredito que não era
nosso caso. Éramos mais aspectos complementares de uma mesma parte e, como não
poderia deixar de ser, tínhamos, sim, nossa contraparte. Heitor era nosso
contraponto.
Heitor
Eu assistia passivamente enquanto Heitor tentava demover
Príamus da idéia de invadir a escola à noite para sabotar o que seria uma data
simbólica/importante da liturgia católica. Príamus, que não professava religião
alguma, mas tinha especial aversão pela fé católica, sentia a necessidade de
questionar tudo que estava estabelecido, o que naquele momento era a
comemoração de Corpus Christi. Príamus havia planejado entrar na escola, à
noite , onde no dia seguinte haveria uma
apresentação dos tapetes de Corpus Christi, confeccionados pelos alunos e
confeccionar rapidamente um último e chocante tapete sobre as glórias de Satã.
O único intuito de Príamus com isso era
se divertir com o choque que causaria nas recatadas senhoras que
visitariam o local. É claro, que já havia ali uma semente de rebeldia/
questionamentos, mas a tônica do momento era a
diversão. Aquilo era contra tudo que Heitor entendia da vida, mas não
seguir Príamus e eu o afastaria das únicas amizades que ele tinha. Era sua
cabeça capricorniana, com seus pés cravados na terra, lhe dizendo que aquilo
tudo ia acabar muito mal, contra seu medo, também tão capricorniano de perder,
nesse caso, seus únicos amigos. Nesse caso, venceu seu medo de perder os
amigos e Heitor, mesmo contra toda sua
lógica, topou a aventura. Naquela mesma noite, enquanto os irmãos residentes na
escola faziam suas orações na capela da instituição, que ficava no pátio da
escola, nós três invadimos o pátio secundário, pelo muro atrás do ginásio. Tudo,
naquele lugar , nos remetia a aterrorizantes arquétipos de medo com que Holywood
nos brindou durante toda vida. Aquele canto gregoriano da missa dos irmãos
vibrava na nota dos nossos maiores temores, e cada sombra daquele lugar sobre
as imagens dos santos ampliava todo o
medo que Jesus nos deu. Pra completar, estávamos ali brincando com coisas
sagradas e promovendo (mesmo que com intenções anedóticas) a causa do maior
inimigo de Deus. Assim, a quem clamaríamos se precisássemos de ajuda diante de
um possível ataque de qualquer entidade cinematográfica demoníaca que por ali
acaso estivesse? Juro, que por mim iríamos embora assim que pulamos o muro, e
por Heitor nem teríamos entrado. Mas Príamus não recuaria e, portanto não
tivemos escolha senão engolir os nossos medos e seguir até o fim com nosso
intento. Assim foi feito e no dia seguinte a bomba explodiu na cidade. Atribuía-se
o feito a grupos “terroristas” de diversos matizes, templos de confissão
espirita em geral, adoradores de satã de bandas de heavy metal que sacrificavam
crianças em seus rituais e outras bobagens de mesmo quilate. Eu admirava a obra
de Príamus sem a menor inveja do autor. Heitor, ainda pensava que seria
descoberto a qualquer momento e expulso da escola entre outras sanções.
Príamus, glorioso, via tudo de longe e, com certeza, internamente, dava
gargalhadas, observando o tamanho da
preocupação das pessoas com, para ele, semelhante bobagem. Esta historia de
nossa adolescência deixa bem explícitas as diferenças entre eu, Príamus e
Heitor. Heitor era de ascendência alemã e estatura mediana. Sua família, em
função do trabalho do pai, que era advogado e trabalhava para uma empresa
produtora de vinhos, havia se mudado
para aquela colônia de descendentes
italianos há alguns anos. Sempre achei que o signo de Capricórnio era
muito adequado a algumas características de sua etnia. Em nossos encontros, a
falta de pontualidade, normalmente de minha parte, deixava Heitor enfurecido. Eu não compreendia
bem porque cinco minutos faziam tanta diferença pra alguém, mas aprendi, com o tempo , a evitar deixá-lo
esperando. Outra coisa que o deixava um tanto contrariado eram minhas visitas
surpresa, que com a intimidade tornaram-se rotineiras. Do nada, eu adentrava
seu quarto sem pedir com licença e sem avisar que viria. Ele mesmo, jamais foi
ao meu encontro ou a qualquer outro lugar que eu lembre sem avisar antes, e
muito menos entrava sem pedir licença. Príamus e eu brincávamos com essa
formalidade toda dele, o que frequentemente o deixava vermelho de raiva ou de
vergonha. Heitor era nosso salva vidas quando se tratava de cumprir prazos,
principalmente no que diz respeito aos trabalhos da escola. Ele sempre foi
muito responsável com suas tarefas da escola e, além disso preocupava-se se
tínhamos feito as nossas. Sempre pensei que ele devia ser um espirito mais
velho que nós. Mas antes que eu faça Heitor parecer um chato irremediável, devo
dizer que sempre foi muito agradável sua companhia. Como bom alemão que era,
sempre foi adepto e disposto a discutir sobre grandes temas filosóficos, além
de ser capaz de dissertar por horas sobre tempo e temperatura. Foram muitas
madrugadas que passamos, Príamus, Heitor e eu a debater Jung, I Ching e tantas
outras cabalas, procurando Deus entre viagens no jardim. Seríamos apenas nós
três para sempre, mas quis o destino adicionar dinamite aos nossos sólidos e
contidos universos de introspecção. E a dinamite era Camilo.
Camilo
Dizem por aí que estranhas e potentes formas de energia
parecem ser liberadas na pratica deliberada de qualquer forma de desobediência,
desagravo ou insurreição. Príamus parecia conhecer essa lei e estar sempre a
buscar heresias e blasfêmias capazes de desconsertar quem quer que parecesse
estagnado. No entanto, eu , como entusiasta fiel de suas maquinações, nunca
pensei que seria vítima delas. Pois bem, meu dia havia chegado, e no dia que
seria uma grande festa da turma na casa de Príamus, com todas garotas da turma
por lá, Príamus decide levar como convidado de honra meu irmão mais novo,
Camilo, que na ocasião, em 1998, tinha uns 11 anos de idade, enquanto nós
tínhamos em média 14. A presença do
menino ali pra mim era quase tão ruim quanto se minha mãe estivesse na festa e
só por isso minha noite já estava irremediavelmente estragada. Como se não
bastasse tal mal feito, o intruso convidado de Príamus, logo centralizou a atenção de todos contando piadas, a maior
parte delas sobre mim. Passariam anos até que eu pudesse apagar os reflexos do
que essa catastrófica noite significou
para minha então frágil vida social. Depois daquela noite , Camilo entrou para
a turma antes de sair da infância. Dali em diante eu não tinha como evitar de
levá-lo para nossas atividades já que todos perguntavam pelo guri o tempo
inteiro, e pareciam ignorar que se
tratava de um piá enquanto todos nós já éramos ‘quase homens”. Bom, passados
meus ranços com o irmão mais novo, não tive o que fazer se não aceitá-lo. Com o
tempo confesso que comecei a gostar e até a tirar proveito da popularidade
precoce do fedelho de várias caras. Habitante do signo solar de gêmeos, Camilo
exalava simpatia e oxigenava nossos dias. Era, para Príamus, a fagulha para
detonar suas ideias mais insensatas. Era o medo nos olhos de Heitor e mais vida
nos meus dias. Assim, fechava-se o núcleo duro das parcerias de aventuras e
conquistas da adolescência. Como o jovem D’Artagnan, Camilo encerrava a
formação de nossa singular e complementar trupe mosqueteira, até que o tempo
nos separasse, um por todos e todos para o que viesse.
A mansão dos Klaus
A família Klaus veio
morar naquele nosso vilarejo por conta do clima. O velho Edmund gostava do frio
extremo. Oriundos de uma das regiões do estado habitadas por imigrantes
germânicos que chegaram da Alemanha até aqui para colonizar o fecundo Vale do
Caí, numa época de entusiasmo coletivo pelos encantos da América, os Klaus fizeram
fortuna na região e contribuíram para o desenvolvimento de diversas culturas
alimentares desse lugar. Porém, Edmund Klaus era desde cedo a ovelha negra da
próspera estirpe e desejava ,sabe lá por quê, o senhor das montanhas
germânicas, ir além das prósperas planícies ocupadas por seus confrades. Assim,
seguindo o caminho natural de sua existência e, abençoado pela fortuna
acumulada por sua família, Edmund resolveu estabelecer residência numa cidade
em formação na serra Gaúcha e predominantemente habitada por descendentes de
italianos. Nessa região, investiu no plantio e no comercio de uvas para a
produção de vinhos e ali reproduziu fortuna semelhante a que seus pais obtiveram como cultivo da
bergamota. Contudo, o velho Edmund conservava em si interesse muito menor nos
números financeiros de suas colheitas,
que nas cartas que mensalmente lhe chegavam de alguma região do Tibete.
Guardava com muito mais segredo esses correios do qualquer demonstrativo
bancário que demonstrava a franca evolução dos investimentos materiais que
tinha mundo afora. Sua notória prosperidade financeira, assim como os muitos
mistérios acerca de sua misteriosa personalidade, eram assunto corrente em
todos bolichos daquele pequeno lugar do mundo. Nós, como amigos de Príamus, seu
filho, éramos obviamente curiosos por desvendar as lendas que envolviam a
família dona daquele casarão de arquitetura inglesa e envolto em mistérios.
Certa feita fomos, a convite de Príamus almoçar com sua família no casarão.
Camilo, Heitor e eu aguardávamos ali, parados em frente aquela porta, três
vezes mais alta que qualquer um de nós, enquanto a campainha evocava o criado a
abri-la para que entrássemos. Entramos ali e voltamos aos contos de fada de
nossa infância quando nos deparamos com três imensas escadas a nossa frente e
com o maior lustre que havíamos visto na vida. As paredes tinham papéis de
paredes ao invés de tinta, onde haviam
quadros que até então só conhecíamos por livros. Príamus nos conduzia como se
andasse no corredor da escola enquanto nós pisávamos o chão de outra dimensão.
De onde paramos, ele gritou:
- Claudius, o almoço está pronto?
Após dez segundos apareceu o sujeito vestido como os mordomos
que conhecíamos do cinema de Hithcook anunciando o cardápio. Três lances de escada precipitavam-se a nossa
frente e Príamus subiu e sumiu por um deles e nos deixou aguardando sua volta.
Eu, sob protesto de meus outros parceiros, intimidados ante a imponência do
lugar, resolvi subir e explorar um dos outros lances de escada. Assim, subi
este primeiro ao que dei de encontro com um corredor com paredes cobertas de
livros, vitrais, espelhos e portas fechadas. Arrisquei então a subida de mais
um lance ,ao que dei com um outro grande corredor com a iluminação ligeiramente
diminuída, paredes forradas de madeira de lei finamente esculpida e símbolos
que me atordoavam e remetiam aos mistérios daquele lugar. Mesmo assim, subi
mais um lance das escadas daquela mansão que, aquelas alturas eu não sabia mais
quantos andares possuía. A iluminação desse terceiro corredor era ainda mais
escura e densa que a do andar inferior e já me causava certo frio na espinha.
Fitei, uma a uma, suas paredes sem janelas, seu chão de carpete e seus
candelabros de pouca luminosidade. Andei, lendo os títulos de livros antigos e
quadros expostos em suas paredes por mais de cem metros até perceber, o quão
estava longe das escadarias de acesso e fitar a figura assustadora , do que anos mais tarde eu
saberia tratar-se de Baphomet . Correu-me naquele instante pela espinha o frio
cristão de quem verifica a presença do próprio Diabo a seu lado. Corri, desci
todos os degraus daquele casarão, que
havia por curiosidade escalado, como se devesse algo para o próprio Satã.
Quando tornei ao andar térreo, Príamus e os rapazes já me procuravam para o
almoço que estava servido. Almoçamos , ou almocei o que pude ante ao terror que
a imagem daquela casa ou a minha imaginação católica me inspiravam .
Também nunca contei a ninguém sobre as visões que tive naquele corredor.
Apenas eu sei da voz do bode que sussurrava em meus ouvidos e dos horrores que
passei longe de Jesus até que voltasse ao
térreo andar onde todos estavam. Era minha iniciação ao reino dos que
querem saber demais.
Nem todas as noites são
iguais
O ano de 2002 passava furiosamente no Brasil, no ápice de uma
crise econômica promovida por sucessivas medidas de austeridade aplicadas por
governos neoliberais, que seguiam a
cartilha de organismos financeiros internacionais subordinados aos interesses
dos EUA. Minha família vinha, desde antes de 1994, arrastando-se
financeiramente como podia, para manter a fome longe da mesa e as “crianças”
estudando. Eu sou o segundo filho de uma família de classe média baixa de
quatro irmãos. Camilo era o caçula. Mas, apesar dos reveses econômicos, tudo ia
bem na escola naquele ano, que seria meu penúltimo no ensino médio. Já haviam passado por mim os piores anos da
adolescência, quando o ser humano expõe-se as mais ridículas situações para
obter aprovação social no seu meio. Aliás,
apesar do turbilhão de informações da grande mídia, que trazia todo dia novos produtos destinados a vender e
influenciar os públicos mais jovens, posso dizer que minha turma mantinha-se
acima dessas tendências e da pequena mediocracia que nos cercava. Tínhamos lá
nosso estilo próprio, mas penso que agíamos sem maiores afetações.
Passaram por nós nesse período inúmeros pseudo surfistas, com suas bermudas
floridas, que enriqueceram diversos
donos de surf shop dessa geração. Esse mesmo mercado, durante esse tempo,
também vendeu milhões de cds, além de secadores e alisadores de cabelo para os
emotivos pós punks. Tudo isso entre outras modas que o mercado imprimiu na sociedade
desse tempo. Quanto a nós, não que elas não nos afetassem de alguma forma, mas
talvez nos salvasse certo saudosismo por “modas” que passaram. Tudo que
ouvíamos de música, vestíamos e as
pessoas que mais admirávamos, eram na
sua maioria oriundos dos anos 70 e 80. O passado fazia muito mais nossas
cabeças que as novidades que o mercado
nunca cansava de trazer. E foi nesse clima, quase nostálgico, que estávamos
vivendo o que seria, possivelmente, o melhor ano de nossas juventudes. Éramos
inseparáveis. Apesar de destoarmos das modas da época conseguimos ser até um
tanto populares. O futuro parecia promissor e até encantado, mesmo que não
tivéssemos a menor ideia do que de fato ele seria .Éramos, enfim , felizes, e
sabíamos disso. Eu, tinha certeza.
A vida vem em ondas e cada uma delas tem e deixa marcas
únicas. Cada fase da vida acaba
sintetizada ou simbolizada nos anais da memória
por alguma ou alguma cenas que guardamos com
carinho especial e que, em si, resumem o espirito de um tempo. Tenho para
mim que a Semana do Festival de Artes da escola, que acontecia sempre durante a
primavera, daquele ano, representa bastante sobre aqueles verdes dias. Antes
disso, no início daquele mesmo ano, nossos monótonos horizontes revoltaram-se
num insight de Príamus.
- Vamos montar uma banda! – Príamus quebrava o silêncio de
uma bucólica tarde , enquanto tomávamos chimarrão sobre a pedra do morro, com
essa insólita novidade.
- Como assim ?!? – Pergunta Heitor com a face pálida e o
espirito de quem sempre temeu novidades.
- Cara, é isso! – Posso tocar bateria, Príamus fica no
contrabaixo, meu irmão na guitarra e o Heitor...bom...o Heitor toca aqui. –
Dispara Camilo apontando para seu pênis pra sacanear o reticente Heitor.
- Seu filho da mãe.... – Resmunga Heitor com as faces
vermelhas e a voz embargada de quem não sabe muito como lidar com brincadeiras.
-Legal, tenho canções minhas que podemos tocar no Festival da
escola. – Disse eu, deslumbrado com a idéia de Príamus.
Estava formada ali, por minha sugestão e com aceitação geral,
exceto o esperado protesto de Heitor, ainda com receio da ditadura, a banda
“Marxcianos”.
Na sexta feira seguinte, após as aulas, iniciaram os ensaios
da banda, que decidimos, seriam num galpão vazio que ficava no sítio da família
de Heitor. Montamos lá no velho galpão nossos instrumentos e iniciamos os
ensaios. Toda nossa imperícia com os
instrumentos eram compensadas por nossas letras, que embora ingênuas, tinham
poesias bem construídas e repletas de conteúdos filosóficos. Mas, o fundamental
mesmo para aquela época eram as altas frequências com que vibrávamos . Naquelas
tardes e noites no galpão de Heitor, entre garrafas de vinho e carteiras de
Gudang Garam ( cigarrilhas de canela que
Príamus trouxe para nós da Indonésia, mas que também eram vendidos em
tabacarias da capital), que agora fumávamos mais pela atmosfera que o ato nos
proporcionava do que por qualquer dependência física de nicotinóides. Inspirávamos-nos
nas bandas dos anos 80. Éramos filhos dos filhos da revolução. Nossos pais
tinham vivido sob uma ditadura que há algum tempo ninguém mais falava sobre
ela. Mas, esses artistas estavam ali pra nos lembrar disso tudo. E nós, por
isso, e por tudo mais que eles tinham pra falar sobre nossas angustias,
amávamos Chico Buarque, Belchior, Oswaldo Montenegro, Raul Seixas, Nei Lisboa,
Engenheiros do Hawaii, Legião Urbana, Cazuza, Zé Ramalho, Pink Floyd, Bob Dylan
e tantos outros mais que nos faziam sonhar e contestar. Assim, entre
canções, sonhos e pequenas contravenções, preparávamos os “Marxcianos “ para o grande Festival da Primavera, nosso
grande momento naquele ano. Neste
caminho descobríamos também que não tínhamos tanto talento quanto pensávamos.
- Precisamos de um vocalista – Vociferou Heitor
irritadíssimo, após mais um de meus esquecimentos de letra durante os ensaios.
As canções eram boas e não estávamos tocando tão mal, porém definitivamente
nenhum de nós sabia cantar.
- Não! Vamos manter assim. – Rebateu Príamus, com o tom de quem queria mesmo uma briga com Heitor
e achava que eu devia continuar cantando na banda.
- Calma, Príamus. Acho que o Heitor tem razão e eu conheço
alguém que penso que fecha com o clima do nosso projeto. – Intervi eu querendo
ao mesmo tempo fugir da responsabilidade do vocal e amenizar o clima tenso
entre Príamus e Heitor.
- Acho que é isso, então. Traz ele amanha, mano! – Definiu
Camilo.
Príamus foi voto vencido e no dia seguinte iniciamos o ensaio
como um quinteto com a participação de
Francisco. Ele era mais velho que nós, tinha toda experiência e paciência que não tínhamos e conquistou rapidamente o respeito pessoal
e musical de todos, incluindo o de Príamus, que a principio era contra. Francisco,
Príamus e eu compusemos várias canções novas e Heitor estava tocando teclado, o
que ampliava o horizonte harmônico das nossas canções. Da galera da nossa geração,
na escola, muitos ainda sonhavam em jogar futebol, outros tantos, mais centrados, em cultivar uvas ou construir
prédios, mas nós tínhamos certeza de que viveríamos de arte. O ano inteiro
transcorreu nesse clima, enquanto o virginiano Francisco colocava ordens nos
materiais de nossa banda e o precavido Heitor nos alertava para não descuidarmos
dos compromissos escolares.
E nesse clima musical os dias passavam velozes, como passam sempre quando estamos a fazer o
que amamos. E, afinal, chegamos ao
grande dia da apresentação do Festival da Canção, para o qual havíamos ensaiado
tanto. O dia não estava menos mágico do que o ano tinha sido até então. Soprava
um vento norte, o sol brilhava e o tempo estava morno e abafado. Naquela semana
na escola, tradicionalmente, as aulas iam só até o meio dia e nas tardes
ocorriam as apresentações culturais. O ginásio ficava lotado e era escurecido
enquanto um palco ao fundo brilhava. Os alunos andavam pra cima e pra baixo sob
as árvores do bosque da escola. Muitos ansiosos para a apresentação pela qual haviam
esperado o ano todo. Não eram permitidas bebidas alcoólicas por ali, mas todos
tínhamos bons vinhos camuflados em garrafas de refrigerantes e, em locais
discretos daquela vasta área, bebericávamos
para controlar a ansiedade natural do grande momento. Éramos pura euforia.
-Me passa o vinho aí, Camilo. – Disse Príamus, nitidamente
tenso.
- Me dá mais um cigarro. – Me pediu Heitor, que fumava um
Gudang depois do outro.
- Toma aí – Disse Camilo, enchendo as xícaras de café de todos com vinho,
que Heitor tinha trazido de casa.
- Gurizada, o negócio agora é ficarmos tranquilos. Ensaiamos
bastante e vai dar tudo certo. – Eu disse isso, talvez mais nervoso que os
outros, mas tentando acalmá-los. – E agora, alguém me dá um cigarro e um vinho
que eu quero é curtir ao máximo esse dia, que como o rio do Heráclito, nunca
mais será o mesmo. - Concluí romanticamente, enquanto de forma vagarosa aspirava
a deliciosa cigarrilha de canela e sorvia aquele vinho, atribuindo-lhe
características que nenhuma outra bebida tornaria a me proporcionar.
- Tá bom, poeta. – Brincou Camilo, cansado do melodrama
geral.
Nesse momento chegou Francisco que não esperava conosco, e
com certeza estava mais tranquilo que todos, pela experiência musical e idade superior as
nossas.
- Parecem nervosos, meninos. - Brincou Francisco, acendendo um Marlboro vermelho, que segundo
ele era um “cigarro de homem” e, nesse caso, nossas cigarrilhas de canela, não
o eram. – Fiquem tranquilos, bebam um pouco mais, mas não muito, que vai dar
tudo certo.
Francisco já havia participado em inúmeras apresentações,
shows e eventos. Chegou a atuar em vários grupos musicais profissionais e não
tinha mais problema nenhum em enfrentar um palco. Além disso, era muito mais perito que nós todos tanto no
vocal como em qualquer outro instrumento que usávamos na banda. Conhecia a
máquina por dentro o que, ao mesmo tempo em que lhe dava toda segurança do
mundo, também o poupava de todo o encanto que aquele
novo mundo tinha para nós.
- Lembrem-se de uma coisa,
– Asseverou Francisco em tom agora sério e filosófico - vocês só fumarão o primeiro cigarro uma vez.
Nenhum outro depois deste terá o mesmo gosto. Então aproveitem cada segundo e
nunca se esqueçam disso.
Assim, após o meditativo silêncio que usamos para absorver
aquele profundo e sábio conselho de Francisco, seguimos nosso dia de astros do
rock. Finalmente, o ginásio, o palco, a multidão na plateia e as luzes acesas.
Fomos a terceira banda a apresentar-se e cada fio de cabelo do meu corpo
arrepiou-se quando subimos no palco ovacionados (pelos amigos, é claro). Tocamos
três de nossas canções, com alguns erros; uns por falta de ensaio e outros por
excesso de vinho, mas no geral foi uma boa apresentação. Assistimos as outras
bandas concorrentes tocarem e fumando um cigarro após o outro aguardamos a decisão
dos jurados. Ganhamos o troféu de melhor canção da tarde com nossa ”Mecânica
Tropical”, escrita por mim e por Príamus e, além disso, Francisco foi escolhido
como o melhor músico do Festival. Eram nossos esforços de um ano inteiro sendo
premiados. Era a chave de ouro pra fechar aquele tremendo ano. Tínhamos muito
que comemorar, e já podíamos beber a
vontade. E agora, junto com vários outros grandes amigos, tomamos as ruas da
nossa pequena cidade madrugada adentro, celebrando nossos feitos e nossas
jovens e promissoras vidas. O tempo continuava abafado naquela noite. O vento
norte anunciava a chuva que não deixaria o dia amanhecer sem chegar. Sinalizava
a mudança dos tempos. Aquele era um rito de passagem. Amanheceu chovendo.
Como nossos pais
Éramos todos filhos de alguma revolução. Nascidos entre os
anos 80 e 90. Herdeiros da revolução sexual. Esmagados pela queda do muro.
Também herdeiros de uma revolução local de fazendeiros que outrora deixou esse
local em farrapos. Carregávamos nas costas, sem nem saber bem disso, séculos de
conquistas imperialistas que culminariam num mundo polarizado. Netos de 20 anos
de repressão militar que calaram ou mataram nossos pais. Somos filhos das suas
lutas e também das sua omissões. Herdeiros de suas bênçãos e maldições. E,
ademais, como compreender nossos tumultuados caminhos sem estudar os motivos,
gens e composições astrais que nos conduziram até aqui.
Minha mãe é neta de imigrantes italianos e nasceu aqui mesmo
nessa região. Casou-se com meu pai, de ascendência negra, que chegou até aqui
para trabalhar nos parreirais locais. Não é preciso dizer que a família de
minha mãe não fez o menor gosto da união e mesmo vencidos nunca a aceitaram
plenamente. Com muito esforço meu pai conseguiu comprar uma pequena propriedade
e sustentar a mim e a meus três irmãos
trabalhando como ferreiro. Meus pais sabiam não ser benquistos em certos lugares
da cidade e por isso conduziam suas vidas discretamente e nos orientavam a fazê-lo
da mesma forma. Cresci acompanhando suas dificuldades e indignando-me ante a
paciência com que suportavam calados injustiças de diversas ordens.
Isabelle
- Com licença, este lugar está ocupado? – Perguntou-me a
menina referindo-se ao assento vago ao meu lado no ônibus da escola onde estava
minha mochila.
- Sim...Sim ..quero dizer ..não... não .. não está ocupado. Já
vou tirar a mochila. Pode sentar . – Respondi,
sentado no meu assento sem nenhuma indiferença e rapidamente tirei minha
mochila verde oliva que ocupava o assento contíguo ao meu. Ela agradeceu,
sentou-se e meu mundo parou.
- Meu nome é Isabelle. Mudei para cá com meus pais há pouco e
estou começando hoje na escola. Quase perdi o ônibus.
- É .. .ele passa ..todos os dias . – Foi tudo o que consegui
dizer naquele momento, tamanha a impressão que o rosto, o cabelo, a boca, a
leveza dos movimentos e tudo mais em Isabelle haviam me causado. Depois passei
horas me condenando por ser tão tapado.
Ele passa todos os dias....que tipo de resposta era essa???
Que tipo de idiota responde algo assim ???
Durante todos os dias seguintes, embora o assento ao meu lado
estivesse quase sempre vazio, ela sentava-se em outros lugares no ônibus e
limitava-se a cumprimentar-me com um frio aceno de cabeça. Assim, todos os dias
eu voltava a culpar-me por ser tão obtuso e não ter aproveitado a chance que
tive de conversar com ela.
Passaram-se dois meses sem que voltássemos a nos falar, mas
de alguma forma avançamos por olhares e sorrisos em nosso tímido relacionamento.
Logo iria acontecer o grande baile do Clube Central, um suntuoso salão de festa
da classe média da cidade, que vez por outra promovia eventos para a juventude.
Esses momentos sempre causavam grande euforia entre o pessoal da escola. Eu e
meus bons amigos estávamos igualmente excitados com a ocasião e nos
organizávamos para aproveitar essa noite. Nos reunimos às 19h, antes do baile que iniciava as 22h, para aquecer a noite bebendo vinho antes de
entrarmos no Clube. Com isso garantíamos que não precisaríamos gastar tanto de
nossos limitados recursos financeiros na copa do clube. Era mais uma noite
mágica daqueles tempos. Mais uma celebração daqueles momentos únicos. Éramos
uma tribo, reunida em torno da fogueira pra celebrar.
- Vamos entrar logo na festa – Sugeriu Heitor , nitidamente
nervoso.
Todos concordamos, e
escondemos o resto do nosso vinho sob as folhagens da Avenida Central.
Compramos nossos ingressos e entramos na festa.
- Cara, que climão! Vou procurar meninas tão bêbadas quanto
eu. – Disse Camilo, com um sorriso de orelha a orelha.
- Meu, olha a arquitetura desse lugar. – Observou Príamus,
que parecia estar sempre em outra dimensão.
Fui até a copa e peguei duas garrafas de cerveja para
bebermos sentados nas mesas que cercavam a pista de dança. Nenhum de nós era
muito chegado em qualquer tipo de dança. Estava claro quando entramos no salão
e agora haviam baixado a luz do salão, deixando nossa mesa sob um breu. Foi nesse instante que vi Isabelle cruzar
pelo canto do salão. Uma visão ainda mais maravilhosa que a que tinha de rotina
na saída e na entrada da escola. Ela me viu, me abanou e sorriu como nunca
dantes.
- Vai falar com ela, sua besta. – Provocou-me Príamus.
Eu ainda não estava pronto e não tinha a mínima ideia do eu
dizer. Precisei de mais duas cervejas pra tomar coragem de cruzar o salão,
pegar Isabelle, que parecia esperar por isso, pela mão, e conduzi-la até uma
área externa do salão. Chegando lá, sem palavras, e mais por não ter o que
dizer do que por coragem, dei-lhe o que seria nosso primeiro beijo. Não foi meu
primeiro beijo e com certeza nem o dela. Mas é certo que foi especial. Ela foi
a grande paixão da minha juventude e depois desse beijo nada seria como antes.
De certa forma, depois dessa, todas as bocas, flores e perfumes que por mim
passaram tinham notas dessa noite.
O sistema é mal mas
minha turma é legal
Após o baile do clube Central comecei a namorar com Isabelle.
No início isso significava irmos e voltarmos sentados lado a lado no ônibus da
escola, trocando beijos e informações sobre nossas vidas. Com o tempo nos
aproximamos também nos intervalos da escola e mais tarde acabamos conhecendo e
apresentando nossos amigos e amigas. Estes momentos, é claro, também eram boas
oportunidades para meus tímidos amigos aproximarem-se de algumas meninas. Nesse
momento Heitor começou a ficar com Letícia e Príamus com Ana, ambas amigas de
Isabelle. Acabei conhecendo outros grandes amigos nessa mistura de grupos. Dois
deles foram Sebastian e Marina. Marina era a melhor amiga de Isabelle. Eram
inseparáveis e de temperamentos opostos. Marina tinha muito mais maturidade do
que Isabelle. Tinha sido mãe ainda adolescente,
e por isso obrigada a de alguma forma amadurecer a fórceps. Seus pais a
mantiveram frequentando a escola após o parto e cuidavam de boa parte da
criação da filha, que teve com outro adolescente que, embora tenha reconhecido
a paternidade não tinha a menor condição de assumi-la. Esta situação dentro de
uma escola católica e conservadora, numa cidade do interior mais conservadora
ainda, com certeza atenuava a carga emocional que essa situação toda já tinha
para Marina. Ela enfrentava tudo isso com maturidade incomum para sua idade na
época, embora ainda estivesse em plena passagem da adolescência para a idade
adulta. Tivemos um caso de simpatia
mútua a primeira vista e logo descobrimos nossas muitas afinidades culturais e
de espírito. Ela acompanhava Isabelle e eu em programações diversas que
fazíamos. Preenchia algum vazio que tínhamos entre nós. Sebastian era um cara com uma grande
sensibilidade artística e uma inteligência aguda que se apresentava como uma
ironia fina ante as inúmeras hipocrisias daquela sociedade local. Lia nas
entrelinhas todas as personalidades de nosso grupo de amigos e tecia críticas
bem humoradas sobre as idiossincrasias de nosso bando. Sebastian assumidamente
gostava de meninos, e sua família, de verve liberal, não tinha nenhum problema
com isso. Contudo, devido as pequenas dimensões de nossa cidade e as grandes
dimensões das línguas preconceituosas de seus habitante, e é claro, suas
mentalidades proporcionalmente inversas, ele sofria discriminações diversas até
por parte de alguns professores. Camilo,
que começava nesses dias a namorar com Débora, também havia sentido esse mesmo
veneno, porque Débora era negra. Pensamentos medievais ainda tem, até hoje, uma força impressionante dentro de algumas
sociedades elitistas, e nesse caso, em muitas cidades povoadas por populações
de ascendência europeia radicadas na Serra Gaúcha. Apesar de todos esses
reveses, éramos uma nova geração que já desejava com mais força derrubar tudo isso
e outros muros mais pudessem nos separar. O sistema era mal, mas nossa turma
era legal.
Marina
Marina sempre soube o que queria ser. Seu coração aquariano
elevava sua alma acima das tempestades que se abatiam sobre ela. Coisas que
para mim seriam uma tragédia sem moral nenhuma em sua evoluída alquimia interna
transformavam-se em lições. Ela parecia
estar sempre um passo a minha frente. Na verdade, um passo na frente de todos. Uma amizade sincera e uma grande sintonia
espiritual brotou entre nós desde o dia em que fomos apresentados por Isabelle.
Marina já tinha passado por muita coisas
em função da sua gravidez precoce naquele lugar preconceituoso e tinha muito a
ensinar. Mas não falava como quem desse
lições de moral. Era sempre leve e precisa nas suas orientações, que
normalmente pareciam mais piadas que conselhos. Também era diferente de outras
meninas de sua idade. Havia deixado muito de sua vaidade pra trás durante a
gravidez e depois disso adotado posturas mais sóbrias diante da vida. Vestia-se
bem , mas sem deslumbramentos. Seu jeito
punk rock de ser, com o cabelo raspado e as camisas de bandas me encantava.
Juntos passávamos horas fumando maconha, ouvindo Chico Buarque e falando de
política. Ela naturalmente dominava melhor ambos os assuntos. Nossa amizade sobreviveu
durante diversos relacionamentos amorosos que tivemos com outras pessoas e
grande parte do que sou formou-se em nossas conversas.
Sebastian
Sebastian esbanjava toda confiança que Leão lhe dera. Tirava
de letra todo esse buliyng de que era vítima e divertia a todos nós com
inteligentes piadas sobre as mediocridades de toda a gente tacanha daquele
lugar. Ele lia muito e sobre muita coisa e isso logo nos aproximou. Tínhamos
por herói comum o grande médico revolucionário argentino Ernesto Che Guevara, assim
como uma grande admiração pela poesia espontânea e precisa do paranaense Paulo
Leminski. Matávamos algumas aulas pra tomar cerveja nos bares vizinhos da
escola enquanto conversávamos sobre poesia, política, relacionamentos, entre
outros interesses. Sebastian tornou-se em pouco tempo mais um grande amigo.
Compusemos algumas canções e dividimos alguns grandes momentos juntos. Nossa
inesperada amizade me ajudou a enxergar a vida e o nosso tempo por ângulos até
então inéditos para mim. Consagrei-lhe um lugar de honra em meu coração e até
hoje conheço poucos sujeitos tão leais e desapegados quando esse meu bravo
camarada.
O último ano
O ano passado, nosso penúltimo na escola tinha sido um tempo
maravilhoso e o atual, nosso último seguia sua beleza, e tornava-o ainda mais
intenso. Embora pouco conversássemos sobre os próximos tempos, todos sabíamos que
os ventos da mudança já haviam começado a soprar. Isabelle e eu seguíamos nosso
namoro mesmo contrariando os seus pais, que não queriam ninguém sem grana namorando
sua princesa. Marina e eu passávamos muitas tardes bebendo, vinho ou chimarrão,
falando de política ou de música e afinando os laços de nossa amizade. Ela era
de longe a menina com quem mais eu me afinava, e desconfio que durante algum
tempo, nutriu sentimentos românticos a
meu respeito, embora sempre se contivesse por conta de sua amizade com
Isabelle. Isabelle era mais alguém que idealizei e que constantemente adaptava
para que tudo que ela fizesse coubesse
na minha fantasia. No fundo ela
era fútil e egoísta, e embora intuitivamente eu soubesse disso, construía o que fosse necessário para manter
para mim mesmo a imagem que queria ver . Nossa banda já tocava apenas de vez em
quando e não tínhamos mais nenhuma ilusão a seu respeito. Eu continuava
escrevendo solitariamente minhas canções
e dividia algumas delas apenas com Príamus e com Heitor. A partida de
Camilo para a Baía quebrou algo que nem sabíamos mas que funcionava como liga
em nosso relacionamento. Os contos de fada nos ensinaram , obviamente errado,
desde a infância de que o que é bom e vale a pena deveria durar pra sempre e
nós aceitamos isso como verdade. Assim, temos grande dificuldade com finais e
despedidas. Seríamos mais felizes se aprendêssemos a contemplar os
relacionamentos como períodos de construção e encontro. Momentos em que
encontramos outra alma para construir em conjunto algo que vai transformar a
todos e que depois naturalmente partiremos para outras grandes construções. O
fato é que não é assim que encaramos a vida. Lamentamos profundamente o que
acabou mesmo que saibamos que o fim é necessário para o recomeço. Somos grandes
estátuas de sal, de saudade. E pra esse fim todos tem seu estilo pessoal.
Isabelle saiu com uma festa de despedida com muitos balões e lágrimas. Príamus
organizou um grande ritual e uma fogueira no bosque da propriedade de sua
família onde avisou a todos que partiria para Porto Alegre passar uns dias e
que depois faria o Caminho de Santiago; iria a Índia e seguiria por outras
peregrinações espiritualistas pelo mundo. Mas disse que ficássemos tranquilos pois ele
voltaria antes do seu derradeira ascensão às dimensões mais sutis. Camilo
arrumou uma briga com alguns playboys do vilarejo vizinho, comeu a noiva de um
deles que era filha de um desembargador e mandou uma foto para o rapaz. Sumiu tres dias e depois me mandou um cartão
postal dizendo que foi trabalhar na Bahia por uns tempos. Foi o jeito dele de
dizer adeus. Heitor marcou um jantar com a família num restaurante, me convidou,
mas eu não fui. Estava sem saco pra
cerimônias. Fui tomar um ultimo garrafão de vinho a noite com Marina na ponte.
No dia seguinte ela iria para Porto alegre fazer direito na UFRGS. Havia
passado no ultimo vestibular e recentemente sido chamada. A noite estava com
uma temperatura agradável. Conversamos sobre tudo. Ela disse que sua filha ficaria
com os pais, que iriam junto no mês seguinte
para POA. Assim todos ficariam morando lá e não voltariam mais pra cidade, mas
que eu poderia visitá-la sempre que quisesse. Bebemos demais, quase nos
beijamos, mas no fim apenas adormecemos abraçados ali no gramado. Acordei ali
sozinho e com um pequeno cartão com o endereço do local onde ela iria morar uns
dias com uma tia até achar um local definitivo. Coloquei no meio de um livro do
Charles Kiefer que ela havia me emprestado. Foi bom ela ir antes que eu
acordasse. Como disse Humberto
Guessinguer numa canção que sempre escutávamos juntos, é sempre mais difícil dizer adeus quando não
há nada mais pra se dizer.
Meus 20 e poucos anos
Passar a infância e a adolescência aqui na Serra Gaúcha, foi
uma experiência encantadora para todos meus sentidos, e me proporcionou outras
grandes experiências que só quem mora longe o bastante das capitais terá.
Contudo, o tempo passava depressa e nossa cidade, além da formação que uma escola particular católica
pode fornecer a nível de ensino médio, não dispunha de grandes recursos para a seqüência
de nossos estudos. As oportunidades profissionais aqui também não iam muito
além de trabalhar nas terras do pai, ou como no meu caso, se ele não as
tivesse, trabalhar para alguém que as
possuísse. Assim, após a formatura no ensino médio, vi um a um todos os meus
amigos indo estudar em Porto Alegre e talvez por lá ficar. Nos primeiros meses
nos falávamos por mensagens em redes sociais e telefonemas quase todos os dias,
mas com o tempo nossa vidas ficaram
distantes demais, os assuntos daqui provavelmente não interessavam mais a meus
bons amigos da metrópole e deixamos que o tempo nos afastasse completamente.
Eu, sem grana nem
iniciativa pra fazer isso fiquei ao lado do meu pai e do meu irmão mais velho
consertando arados para os proprietários de terra da região. Meu irmão Camilo
havia viajado para trabalhar com caminhões no nordeste um ano antes. Passado um
ano de tudo isso, meus sonhos eu murchávamos um pouco mais a cada dia. De vez em quando eu
ia a Caxias do Sul sozinho assistir algum filme no cinema. Na volta passava na
casa de Francisco, pra tomar um chimarrão, tocar uma viola e lembrar bons tempos.
Na última visita que lhe fiz ele me disse que recebeu uma proposta pra
acompanhar o Kleiton e Kledir como
guitarrista numa turnê nacional que os dois fariam. Desejei-lhe sorte, dei um
grande abraço no velho amigo e nunca mais nos vimos. Quando cheguei em casa
naquela noite, depois de mais de um ano, minha mãe disse que Isabelle me ligou
e que precisava falar comigo mas não deixou nenhum telefone. Fiquei o resto
daquela noite esperando um retorno. Depois o resto daquela semana e depois o
resto do mês. Depois deixei de esperar.
Era uma sábado, após um dia longo de trabalho, quando as
luzes do vilarejo estavam já todas baixas e a fumaça saia melancolicamente por
aquelas chaminés, que testemunharam minha vida até ali, que passei n abodega do seu Genésio, pedi-lhe
um vinho daqueles produzidos ali nas terras do pai de Heitor, e sai comer um
pouco de poeira daquela noite quente, que por ser ainda inverno certamente
antecedia a chuva que devia chegar ainda antes do amanhecer. Sentei junto a
ponte do riacho com o violão e a lua cheia no céu. Abri o vinho e uma carteira
de Gudang Garam, que Príamus comprou em POA e me enviou pelo correio um mês
desses. Bebi à solidão e aos meus bons amigos e decidi que já era tempo de eu
pegar a estrada em qualquer direção pra fazer vento ou história.
Vou pra Porto Alegre,
tchau! (2004)
A minha chegada na capital foi discreta e sem grandes
pretensões. Precisava de um emprego. A grana que juntei nos últimos meses no
interior me garantia não muito mais que um mês de sobrevivência por aqui. Não
sabia se encontraria meus amigos com facilidade aqui e nem em que situação
estariam. Tinha perdido o contato com quase todos. Mas vim
decidido a fazer o que fosse necessário para não voltar. Tudo lá era nostálgico
demais pra que eu pudesse me mover pra qualquer lado. Não tinha nada mais pra
mim lá.
Cheguei em Porto Alegre numa sexta feira nublada, às vésperas
de fim de semana num mês de inverno. Andei um pouco da rodoviária ao Centro da
cidade. Eram 17 h mas a noite já caía
por conta do dia chuvoso . Precisava encontrar logo um local pra ficar
que não custasse muito caro. Parei na primeira placa da Rua Voluntários da
Pátria em que piscava em néon a palavra Hotel. O local era um muquifo e a área
externa evidentemente uma rua de prostituição, mas pouco me importava.
Precisava só de uma cama limpa. Acho que não foi exatamente isso que encontrei
mas caí de cansaço com roupas, mala e tudo na cama até sentir o sol daquelas
janelas sem cortina esquentar meu rosto. Foi a primeira noite, distante de tudo
o que passou. A primeira noite de uma nova vida que eu não fazia a menor ideia
do que seria. E era justamente essa insegurança que me enchia de entusiasmo,
sonhos e ilusões que encantaram meus primeiros tempos na capital.
No dia seguinte procurei um apartamento pequeno ali mesmo
pelo centro que também fosse adequado ao meu modesto orçamento. Achei um
simples, mas limpo ali pela região da
cidade baixa pra passar mais alguns dias e conseguir falar com alguém e começar
a trabalhar. Tentei ligar para todos os números dos amigos que tinham vindo pra
cá, mas todos deram foram da área de
cobertura da operadora de celular. Na certa todos já tinham trocado seus números. Também tinha pouca
relação com seus parentes que ficaram na Serra. Além disso, todos eles me achavam um fudido e dificilmente
me passariam o telefone de seus promissores filhos, pra que eu fosse atrapalhar
suas promissoras vidas. Assim, me concentrei em procurar trabalho.
Uma bailarina suja de
óleo diesel
Porto Alegre, como muitas cidades grandes, é o palco dos
grandes contrastes da era moderna. Os
signos da tecnologia nos painéis
eletrônicos de led, sinais de trânsito com inteligência artificial, ônibus com ar condicionado e sinal wi-fi
convivem com a miséria dos muros pichados pela ignorância, com os cheiros das
sarjetas fétidas onde dormem as, mulheres, as crianças e os homens que não vão
comer hoje o pão que não faltava a nenhum ser vivo de civilizações já extintas.
Um vendedor ambulante de poesias passa e por R$ 2, 00 me vende um cartão
anônimo , com uma sorte igual a um
biscoito chinês. O cartão diz, sei lá se como advertência ou profecia:
“A lixa grossa da vida...vai ralar teu couro...
Vai moer o ferro, até que vire ouro.”
Fique, pensando, quantos outros com a mesma frase terá ele
vendido. E quantas daquelas frases
atravessaram filtros mentais e
tornaram-se vírus inconscientes do pensamento.
O reencontro
Depois de um ano de solidão e encantamento com Porto Alegre,
quando me encontrava mais longe que nunca do passado ele finalmente me procura.
Estava nos sebos sob o viaduto da Otávio Borges, procurando uma cópia do Dark Side
of the Moon, do Pink Floyd em vinil, já que acabara de compra uma vitrola e
queria ouvir tudo que gostava novamente agora com a densidade mágica que o
vinil conferia a qualquer som. Não foi difícil encontrar um nas prateleiras.
Aproveitei e procurei outra coisa quando ouvi no fundo da loja uma voz
familiar. Atrás de uma prateleira de discos de música clássica estava ali em
carne, osso e uma grande cabeleira, meu amigo Príamus, explicando para o
vendedor que Bach nos permitia uma conexão vibratória com a consciência de Cristo e de outros grandes mestres,
especialmente em sua obra “Paixão segundo São Mateus”.
- E aí cara, ainda não ascendeu dessa dimensão??? – Gritei
abrindo os braços.
-Seu merda!!! O que faz aqui?? De que dimensão você
apareceu?? – Disse Príamus, vindo ao meu
encontro para um longo abraço.
Ficamos ali dois minutos sem desfazer-se daquele abraço como
se tivéssemos nos encontrando em outra
vida. E de certa forma era isso mesmo.
- Estou aqui há mais de um ano, cara. Mas sua mãe me disse
que você não usava telefone e que também pouco enviava notícias e sempre de
endereços diferentes. – Reclamei com ele.
- É...não estava afim de ser encontrado mesmo. Mas que bom
que você está aqui. E tenho certeza de que se nos encontramos agora é porque
era necessário. Então vem, vou pagar os discos e vamos lá no meu ap. tomar umas
cervejas e colocar a conversa em dia.
Saímos dali eufóricos os dois e com a naturalidade de quem
parecia ter se visto no dia anterior. Príamus alugava um apartamento ali perto,
na rua Demétrio Ribeiro. Subimos lá com uma dúzia de cervejas e colocamos o
disco que eu tinha comprado na vitrola dele.
- E o resto do nosso povo?? Tem notícias?? Perguntei
curiosíssimo.
- Sim, sei como encontrá-los. Mais tarde vamos vê-los, mas
agora quero saber de você. Achei que nunca o veria fora daquela cidadezinha. –
Responde Príamus, tentando controlar
toda minha evidente ansiedade.
Contei pra ele que tinha chegado em Porto há mais ou menos um
ano e que desde então trabalhava num bar onde as vezes também fazia um som, que
morava ali perto dele e que tinha começado o curso de história mas que não
tinha muitos amigos. Expliquei que minha diversão nas horas de folga era procurar livros e discos pela região
central da cidade e as vezes tomar um café ou um Chopp sozinho na área de
fumantes do café Majestic, na Casa de Cultura Mario Quintana. Brinquei que as
vezes fazia umas parcerias musicais com o poeta quando esse andava por lá atraído
pela fumaça dos cigarros. Ele me contou vagamente de suas viagens a Índia,
sobre o caminho de Santiago e sobre sua busca pela pedra filosofal. Disse que
depois me falaria mais sobre tudo, mas
que naquele momentos tínhamos uma festa pra fazer na casa de Marina.
- Não acredito, agora?? Falei em êxtase e já meio bêbado.
- Vamos, é aqui perto. – Me falou Príamus me puxando pelo
casaco enquanto pegava sua capa de chuva preta.
Chegamos no ap. de Marina, onde estavam Sebastian, Débora, a
ex namorada de Camilo, além de Carlos e do Carioca, dois amigos deles de Porto
Alegre. Sebastiam e Marina grudaram-se no meu pescoço enquanto censuravam
Príamus por não se deixar encontrar e o acusavam de me manter escondido só pra
ele. Depois começamos a colocar as novidades em dia, mas ainda havia ali , naquela
sala, um certo constrangimento próprio
da distância, que não havíamos quebrado até então.
Uma prece aos novos
Deuses
Todos estavam sentados na sala do apartamento aguardando o jantar , quando
aquela voz do banheiro faz todos calarem pra apreciar a volta de Príamus, o
herege, numa sublime e irônica oração sobre a mudança dos tempos.
- Oh grande Google... Oh senhores da máquina.... muito grato
sou por tudo que não tínhamos nos anos 90 ....pela abundante oferta de
pornografia gratuita...e pela invenção do celular que nos permite, sem levantar
suspeitas, entrar no banheiro e bater uma punheta ...grato sou ...grato sou...grato sou pela tecnologia que me
permite sem visitar sebo nenhum ... enquanto cago ...conseguir ouvir um álbum
raro do Lula Cortes sem gastar um centavo nem sujar o álbum de merda. Obrigado,
amém!
A gargalhada geral
baniu do ambiente qualquer clima estranho que ocorre nos reencontros de gente
que ficou muito tempo sem se ver. De repente, nos reconhecemos, éramos todos os
mesmos de outro tempo.
O signo da traição
Após mais algumas cervejas e com o gelo já quebrado,
dedicamos a noite a relembrar as aventuras e desventuras de nossa profícua
adolescência na Serra Gaúcha. Ouvimos todos os discos, falamos de todos os
políticos e a sintonia que sempre tivemos tinha voltado como se não houvesse
passado mais que uma semana da última
vez que havíamos nos visto. Quase amanhecia o dia e eu não aguentava mais de
curiosidade de saber onde andava o Heitor e principalmente Isabelle.
- E aí gente, porque o Heitor e a Isabelle não estão aqui? –
Perguntei no tom mais ingênuo possível.
Pressenti no silêncio constrangedor de todos que talvez não
quisesse ouvir a resposta de minha pergunta, mas era tarde demais para desistir
da resposta.
- Cara. – Disse Príamus, diante da reticência dos demais –
Isabelle e Heitor casaram-se e esperam um bebê.
- Que??? – Retruquei incrédulo e como se tivesse ouvido mal.
- Sabíamos que você
não ia aceitar bem a notícia e por isso estávamos evitando te contar –
Justificou-se Marina, tentando salvar a noite que pra mim havia terminado.
Disfarcei com palavras o meu desgosto que tinha ficado
evidente pra todos nas expressões do meu rosto. Disse que entendia a situação e
que apenas fiquei surpreso por nunca imaginar qualquer relação entre os dois.
Eles me explicaram que também não aprovaram esta relação dos dois e que Isabelle
havia tentado me contar porque eles a condenaram. Disseram que não se
relacionam mais com eles e que Isabelle aproximou-se dele porque ele havia
ficado rico com uma empresa de desenvolvimento de softwares, que tinha montado
e que a família dela fez gosto da união. Enfim, passaram meia hora
apresentando-me desculpas para os dois e para eles mesmos. Ainda sem esquecer
eu quis mudar de assunto.
- E você, Marina? O que tem feito? Como está a pequena
Marcela? – Perguntei-lhe procurando sair do centro daquela roda.
Marina me contou que Marcela morava com ela, que estava muito
bem e que hoje estavam com seus pais, mas que logo eu iria revê-la. Seguimos durante
mais uma hora tentando desfazer-se do clima da revelação. Após isso dei adeus a
todos e disse que precisava trabalhar amanhã cedo, mas que logo marcávamos alguma coisa. Trocamos
telefones e endereços e depois fui pra
casa procurando no caminho um lugar para uma bebida que me fizesse esquecer aquela noite.
Príamus e o novo homem
Após aquela fatídica noite, recolhi-me a minha casca e fiquei
ali protegido e me achando vítima do mundo até que um mês depois disso a
campainha toca e quando tento ver quem é no olho mágico, encontro apenas um
outro olho a tentar ver do outro lado da porta. Príamus sabia que eu estava recolhido e me
escondendo do mundo e deu um tempo pra que eu pudesse curtir meu luto mas achou
que agora já era tempo de sair dele.
- Abre aí , seu merda! As cervejas estão esquentando. –
Gritou ele batendo com mais força na porta.
-Calma.. calma.. já to indo.... – Respondi tentando dar uma
rápida organizada no ambiente antes de abrir.
- Entra aí , eu estava estudando, tenho uma prova de fim de
semestre amanhã, mas acho que posso tomar umas cervejas com um velho amigo. –
Disse , tentando transparecer tranquilidade.
- Que prova, o caralho, o que vim te dizer você não ia
descobrir sozinho nem em duas faculdades. – redarguiu ele no seu típico tom de
autoridade moral.
-Então, vamos lá, meu velho! Conte-me sua história. – Disse-lhe,
mantendo o tom bem humorado mas sabendo que ele estava disposto a falar sério .
E , como sempre gostei de suas histórias e há muito tempo andava sem
perspectivas nenhuma, estava também ansioso por ouvi-lo enquanto degustava as
cervejas especiais que ele trouxe e enchia o apartamento com fumaça de cigarro
de canela.
Ele abriu uma cerveja, acendeu um Gudang e começou um interessante monólogo,
que iniciou com as descobertas espiritualistas que fez na Índia, remontou as
suas impressões do caminho de Santiago e de outros roteiros de que tinha feito
em busca de autoconhecimento. Ele, contudo, não caía em sua narrativa numa piegas
explicação transcendental do cosmos, e ia envolvendo nas suas recentes teorias
um interessante plano, em que a evolução
e ascensão pessoal de cada ser estava intimamente ligada a história da
humanidade e ao compromisso que tínhamos
com essa.
- Che proclamava o novo homem, dizia que o trabalho
voluntário em prol da humanidade é uma escola criadora de consciência. É sobre
essa consciência que vou te falar meu caro amigo.... – Falou-me de pé com o cigarro entre os dedos.
Explicou-me que a humanidade
caminhava rumo a uma sociedade cada vez mais individualista e hedonista,
na contramão do desenvolvimento espiritual para o qual todos aqui estamos
encarnados. E mesmo que esses problemas sempre existissem em toda história
conhecida da raça humana, especialmente
agora, após a revolução industrial e o predomínio absoluto dos interesses do
capital sobre toda a atividade humana, essa situação corrompia o necessário
equilíbrio das forças opostas do universo e podia ser o inicio de uma grande
era de trevas. Falou-me que trabalhava
atualmente para uma organização que atua aqui na América Latina e em outras
partes do mundo, para manter o
equilíbrio da consciência universal e impedir retrocessos nas conquistas
sociais da humanidade. Disse que chamava-se a Liga dos justos, e que Che
Guevara já fizera parte dela.
- Sério, tipo a liga da justiça????kkkk – Interrompi com uma
incontrolável gargalhada.
- É ..tudo bem ..o pessoal não foi muito criativo no nome,
mas é sério. – Respondeu, aceitando a brincadeira .
Continuou me contando sobre as ações dessa organização, e que
encontrara nesse seu trabalho a verdadeira pedra filosofal, que é usada par
transformar nosso chumbo, ou defeitos, falhas
humanas, energias densas, em ouro, ou energias sutis, pensamentos livres, atos
altruístas. Falou-me que a chave era a expansão da consciência. Condenou-me por
estar a li a lamentar uma decepção amorosa com uma burguesinha de merda e não
enxergar que a nossa existência só pode ser medida através de uma perspectiva
muito maior. Atribuiu minha atitude pequena a manutenção de uma pluralidade de
egos que eu e todos os seres humanos
alimentávamos .Afirmou que somente no constante esforço alquímico em
transmutar nossas energias densas por energias cada vez mais sutis, a cada novo
dia, a cada nova vida, nas muitas vidas que podemos ter em uma só, e a partir da compreensão de que
estamos aqui para sempre e para sempre evoluir é que podemos entender o quanto
as vezes somos tolos, levianos , mesquinhos e também o quanto podemos ser
grandes se prestarmos atenção as entrelinhas desse caminho.
- Cara, precisamos entender que a história não faz justiça automaticamente
e que seu final está muito além do que imaginamos. Se não agirmos, os tiranos
vão agir. Nossos métodos, escolhemos por erros e acertos. Agora, com certeza é
muito mais fácil escrever discursos do que diálogos. – Declarou, com um tom
teatral de quem narrasse um gran finale.
Depois disso tudo ele
me surpreendeu, recordando e revelando-me que sabia de uma cena antiga onde eu
estava sozinho e da qual nunca lhe falei a respeito e nem a ninguém.
- Você viu Baphomet caminhando atrás de você naquele corredor
da casa de papai, não viu?? – Inquiriu-me
assertivamente.
- Como você sabe? Você estava lá
escondido? – Perguntei assuntado.
Perguntei assustado.
- Não, caro amigo. Intuição.
Registros akásicos da natureza. Sonhos. Chame como
quiser . Mas eu sabia. Também sabia que quando fosse o momento certo eu
voltaria a encontrá-lo e sabia que você precisaria ouvir tudo o que estou lhe
dizendo, pra começar a juntar as peças
de sua vida e entender o que eu você faz por aqui. Também sei que não vamos
tornar a nos ver por um longo tempo.
- Ué, por que isso cara? –
Pergunte-lhe ainda aturdido pela quantidade de informações que ele me trouxe
naquele dia.
- Bom, isso é mais simples de
responder - Disse-me rindo – Vou cumprir
uma missão para a organização e depois vou para Cuba, onde espero você.
- Mas como é que eu vou pra Cuba?
Fazer o que?- Disse-lhe ainda sem entender nada.
- Tenho certeza que vai, meu amigo!!
Baphomet está aqui do meu lado me dizendo! – Falou-me rindo, para provocar-me o pavor.
Entre surpreso e assustado com tantas
informações continuei ali ouvindo coisas que nunca soube sobre a miteriosa
família Klauss. Falou-me que o velho Edmund, era um grande alquimista, herdeiro
de uma longa linhagem e que aquela grande e assombrada mansão da família tinha
tantas passagens secretas quanto mistérios e que muitos deles ele mesmo ainda
não sabia. Esclareceu-me que as religiões espiritualistas, ao contrário das
ordens de católicas baseadas nas tradições judaico cristã ocidentais,
compreendem que todos os deuses, símbolos e escrituras sagradas devem ser
lidas a partir de um paradigma capaz de
decifrar seus códigos, e não com uma visão linear e literal das narrativas e formas
apresentadas por estes. Me deixou uma série de livros emprestados para que eu avançasse
meus estudos em conceitos esotéricos do universo. Falou-me mais sobre Baphomet,
que ao contrário do que os cristãos pensam não representa necessáriamente a
figura do diabo, mas que existem ali naquela imagem arquetípica símbolos
diversos sobre a relação da criatura humana com o universo, do macro com o
micro cosmos, da terra e do céu da oração que os católicos chamam de pai nosso .Eu,
que apesar do limitante conceito de crenças em que fui criado, sempre fui
aberto ao mundo, interessei-me muito por tudo aquilo. Pelo esoterismo, pelo
novo homem, que via o mundo além dos seus pequenos vieses cotidianos, pela
organização dos justos e por como eu iria pra Cuba. Príamus, recomendou-me paciência, deixou os livros,
disse que me mandaria outros materiais pelo correio e que se eu realmente
quisesse, a organização me procuraria no tempo certo. Fui ao banheiro mijar e
quando voltei encontrei apenas um bilhete que dizia:
- Não esqueça, amigo, conhece-te a ti
mesmo.
E essa foi a saída dramática de Príamus,
que não poderia me dar tchau como uma pessoa normal. Dias depois procurei-o no
AP que ele me levou outro dia e ele já havia entregado o imóvel. O tempo passou
e as peças de Príamus se uniam na minha
cabeça e faziam mais sentido a cada livro que eu lia e dia que passava.
Céu de brigadeiro sobre
nós.
Passados alguns dias da explosiva visita de Príamus resolvi
visitar Marina. Fui direto ao seu apartamento já que no outro dia perdi seu telefone.
Ela agora morava com a pequena Marcela,
que já devia ter nesse ano de 2006 entre seis ou sete anos. Marina, que veio
para Porto Alegre em 2004, já estava na metade da sua faculdade de direito e
fazia estágio num escritório. Nessa época, eu concluía o segundo semestre da
faculdade de historia e ainda trabalhava num restaurante onde as vezes tirava
mais uma grana tocando uma viola. Cheguei de surpresa aquela noite no
apartamento dela, com uma pizza e uma garrafa de vinho debaixo dos braços.
- Meus Deus – Disse ela , sorrindo. – Achei que nunca mais
fosse te ver.
Expliquei minha ausência e fui sincero sobre o luto que
assumi com a notícia do casamento de Heitor e Isabelle ,mas contei também sobre
minhas novas perspectivas. Falei sobre a visita de Príamus e sobre meu recente
interesse por assuntos esotéricos, que eu compreendia ser complementar aos meus
compromissos políticos e aos meus estudos sobre a história e a humanidade.
Achava que eles me conduziam além da superfície dos livros de história e me
adicionavam uma consciência superior a da atualmente limitada pela ciência
reconhecida. Marina empolgou-se com meu entusiasmo e admitiu não ter me visto
tão feliz assim desde a adolescência. Ela estava especialmente linda aquela noite, e sua
serenidade tornava-a ainda mais bela ao
longo dos anos e me fazia especialmente bem naquele tempo. Após a pizza, muita
conversa e alguns vinhos não consegui não beijá-la. Na verdade, não sei porque
não o fiz antes. Tínhamos tudo a ver um com o outro e era inevitável chegarmos
ali. Percorremos o caminho mais longo mais foi bom não usarmos atalhos pra
chegar até aqui. Começamos a namorar e seis meses depois decidimos morar
juntos. Eu trabalhava a noite, estudava pela manha e a tarde ajudava a cuidar
da pequena Marcela que crescia rapidamente. Eram dias incríveis. Eu estava
feliz como nunca estive antes. Todos estávamos muito felizes. Sebatian aparecia
seguido para nos visitar. A cada mês Príamus me enviava mais um pacote de livros e
fitas que queria que eu estudasse. Recomendava-me escolas com as quais passei a
me reunir e a praticar rituais para autoconhecimento. Em 2008 Marina formou-se
e abriu seu próprio escritório de direito, no anos seguinte e eu me formei e passei num concurso para dar aulas numa
escola pública do Estado. Marcela tinha dez anos e o país ia muito bem entre
2009 e 2010, sob a presidência do Partido trabalhista nacional. No ano seguinte
ocorreu mais uma eleição e o presidente elegeu sua sucessora do mesmo Partido. As
vagas em faculdades publicas eram
acessíveis a maior parte da população jovem, o emprego era considerado pleno no
país, as reservas financeiras eram as maiores de todos os tempos, as obras
públicas movimentavam a economia de norte a sul do Brasil. A América latina
toda crescia e evoluía sob regimes democráticos de esquerda em todo o
continente. Mas, mais uma vez interesses perversos nos aguardavam na próxima
esquina, decididos a não permitir a evolução de governos populares nessa região
do mundo. Os grandes grupos capitalistas não estavam dispostos a reduzir suas
assombrosas margens de lucro pagando melhor seus empregados ou oferecendo
empréstimos a taxas de juros moderadas. Era a fúria do capital, que não tem
nada a ver com sentimentos humanos, buscando formas de atropelar a história e
as construções democráticas e o que mais fosse necessário para fazer valer seus
nefastos interesses.
Uma noite mal dormida e
um país em maus lençóis
Em 2010 o governo trabalhista conseguiu mais uma vez reeleger sua plataforma desenvolvimentista e
manter o pais crescendo apesar de uma grande crise do capitalismo mundial.
Neste período aumentavam no Brasil e no mundo os movimentos da juventude contra
regimes estabelecidos e contra toda ordem política vigente. No Brasil fenômeno
semelhante foi manipulado pela direita para enfraquecer o governo trabalhista.
De certa forma essa manobra foi bem sucedida, já que este não obteve nas eleições
de 2014 o mesmo apoio popular que nos pleitos anteriores, mas, mesmo assim
saiu vitorioso. Contudo, a direita nacional, representantes dos interesses de
grande s grupos capitalistas não aceitou facilmente mais essa derrota, e
articulou através de movimentos sociais de direita, articulações escusas na câmara
de deputados e no senado, e maciço investimento nas redes sociais apoiados pela
grande mídia, a derrocada do governo popular através de um golpe político que
obteve sucesso em 2016. A esquerda, agora expulsa do governo, cometeu no seu
caminho alguns erros capitais. Possivelmente, o maior deles tenha sido a
escolha de seu vice presidente. Miguel Brenner era um deputadozinho que cresceu
no período pós ditadura, militar auxiliando empreiteiras a ganhar obras
públicas e depois obtendo apoio destas para reeleger-se e galgar espaços
maiores dentro do seu partido, nacionalmente conhecido por agregar lobistas de
todos as extirpes e lugares do país. O partido popular entendeu que precisava
da força política dessa alcateia pra manter-se no poder e foi por ela traído
nesse processo. O tal deputadozinho assumiu a presidência após o impeachment da
titular e iniciou no país a aplicação de uma plataforma econômica neoliberal
que iniciou por dilacerar o patrimônio público através de privatizações
absurdas e segue por atacar direitos e conquistas trabalhistas, reduzir gastos
públicos com saúde e educação e desmanchar o Estado em benefício do privado até
não sabemos mais quando. O desemprego toma conta do país, os direitos humanos
são flagrantemente desrespeitados e, a constituição tornou-se mera formalidade
que ratifica os interesses do capital, ou é modificada ao bel prazer de um
poder judicial conivente com os desmandos da classe política.
Uma noite acordei a uma hora da manhã com a notícia de quem
um aluno da escola onde dei aula estava no hospital porque eu foi vítima de um grupo de bandidos fãs de um
deputado fascista. O garoto andava na rua com uma camiseta vermelha do Che
Guevara quando foi abordado pelo intolerante grupo homicida, que bateu nele até
que um carro da polícia passa-se, ao que eles fugiram e conseguiram escapar. O
garoto ficou três dias em coma. Estes casos estão multiplicando-se no Brasil e
não temos qualquer garantia que as crianças voltarão pra casa.
Tudo que é sólido
desmancha no ar
Marx já sabia que a sede de poder de Fausto acabaria por
fuder a todos nós. Desde cedo ele entendeu que a sanha do capital não seria
facilmente contida e que seriam muitas as suas vítimas. Ele conseguiu inclusive prever a ausência de
valores humanos que a circulação do capital disseminaria . Viu a quilômetros de
distância que o sagrado seria profanado, que os vendilhões comprariam o templo
e os sacerdotes é que seriam expulsos dali. O governo de Miguel Brenner, que
chegou a presidência sem votos, através de um golpe parlamentar, e que agora faz ali o que bem entende, e a
contraparte contrariada, que teve seu voto desrespeitado, não esboça reação, porque não se entende como um todo e sim como um indivíduo, que quer mas não tem poder e tem poder mas não
tanta vontade assim. Eis o retrato da modernidade pintado por Marx , brilhantemente esboçado por Berman e
penosamente sentido por esse país, que sente mas ainda não entende plenamente sua
dor. Não entende porque não quer. Não entende porque ela não é real enquanto é
do outro, ou enquanto ainda é possível dividi-la com o outro. O garoto que foi
espancado pelos fascistas não é meu filho. Dos 60000 jovens mortos em 2016 75%
eram negros e eu nem meu filho somos negros. Ufa! A violência contra as
mulheres aumenta. Sabemos que os feminicídios notificados aumentaram em 6,% de
2016 para 2017 mas que porra são esses números que não nos dizem nada! O
capital conseguiu nos separar do resto da humanidade de tal forma, que só
sentimos quando a dor é nossa. Quando arde na nossa pele. E talvez, quiçá, a
dor nos una já que o prazer dos passeios no Shopping Center, e de todas ostentações
capitalistas no separam como seres humanos. Eu sabia que todos pensavam assim.
E pensava no que eu podia fazer.
Passei muitos dias com essa pergunta na cabeça, até que
recebi mais um pacote de Príamus, com um convite para conhecer a ordem dos
justos mas sem data nem local definido. Ele apenas dizia ter certeza que no
tempo certo eu estaria lá presente. Era um
tempo de muitas passeatas e movimentos contra o golpe na democracia, que
Miguel Brenner promovia no país. Marina e eu acompanhávamos todos esse
movimentos junto com Marcela, que então era adolescente e já entendia os danos
que essas políticas entreguistas trariam para o futuro. Estávamos no lado certo
da história. Nossa família sentia todos os reveses dessa situação em que o país
estava atolada, mas conosco diretamente nada tinha acontecido até o dia em que
recebi um telefonema do hospital. Marcela tinha sido atingida por uma bala de
borracha, que a polícia militar, à mando do governo golpista, atirou nos
manifestantes. Uma dessas atingiu a jovem Marcela na cabeça e quando ela
desmaiou ainda bateu a cabeça no meio fio. Estava no hospital ainda
inconsciente e eu tive que avisar Marina disso. Fomos desesperados para o hospital
onde demoramos para encontrá-la e ter notícias. Eles ainda não sabiam dizer que
danos a queda ou a bala poderiam ter causado, mas nos adiantaram que era grave
e pediram que aguardássemos. Foram horas de agonia. Às 22 horas em ponto o
médico confirmou nossa identificação no corredor e nos informou que a jovem
Marcela acabara de falecer, por conta do
traumatismo craniano e do rompimento de uma artéria. Nosso mundo acabou ali e
só então entendíamos o quanto todo esse golpe era nocivo para todos nós,
brasileiros e seres humanos.
A ordem dos justos
Ainda não apareceu na história nenhum tirano a prova de
balas. É bem verdade que também nenhum justo que resistisse ileso aos seus
impactos. Assim, irmãos, partamos do princípio de que somos iguais. Embora a
história tenha desde sempre nos dado por fardo heranças malditas, podemos, por
direito autoral que temos como seus co escritores, resistir às canetas ambiciosas dos que pretendem nos
escravizar. Assim, somos herdeiros do legado de todos que já lutaram pela
liberdade de construir suas próprias histórias, ante a sanha dos que não
admitem a igualdade como princípio básico da coexistência humana. Estamos aqui
porque escolhemos, ao nosso modo, seguir carregando as bandeiras de Bolívar, de
Marx e Engels, de Lênin e Trotski, de Fidel e Guevara, de Brizolla, Marielle e
de tantos outros, que muitas vezes preferiram morrer a ficar calados ante as
injustiças de um mundo em que o dinheiro corre livre, e o ser humano não. Aqui
chegamos porque fomos e somos vítimas de um complexo plano, que manipulam todas as peças do jogo e que altera suas
regras por força do capital que detém. Só existimos dessa forma, com essas
convicções porque foram rompidos os limites de todas as cartas, que permitiram
o fim da barbárie e o inicio da civilização. Esses documentos, que celebravam
os acordos mínimos para que
convivêssemos como seres humanos, e não como as feras que já demonstramos
poder ser, foram quebrados. Os termos que nos levaram a acreditar na democracia
e na possibilidade de evoluirmos através dela, como sociedade e como seres
humanos foram brutalmente violados, e
algo precisa ser feito para que esse sutil equilíbrio seja restabelecido, e
para que a raça humana não caminhe para o caos previsto pelas mais tenebrosas
obras de ficção. Os ratos que roem esses sagrados papéis escritos com sangue,
que constituem nosso código de leis, definitivamente não temem o que está
previsto neles. Estes criaram uma rede paralela de existência com buracos por
onde vão sempre escapar e multiplicar-se. Diante dessa perspectiva
avassaladora, criamos, em meados de 1961, numa reunião entre diversos líderes
guerrilheiros, oriundos de muitos países
latino americanos, uma ordem secreta para acompanhar o desenvolvimento das
democracias nos países latino americanos e defender esse processo das
constantes tentativas de interferência do poder financeiro no seu caminho.
Muitos grandes políticos, intelectuais, artistas, professores, guerrilheiros,
entre outros, vem desde então apoiando as ações dessa organização. Nossas ações
envolvem a formação de quadros para disputar espaços políticos com
representantes das grandes corporações financeiras nas esferas democráticas do
poder estatal, nas escolas, fábricas, faculdades, igrejas e onde mais quer que
haja necessidade de fazê-lo. Mas, desde nossa formação, sabíamos que o dinheiro
era capaz de burlar todos os estatutos da ordem democrática, comprando a
imprensa ou até mesmo os votos, Portanto deferimos, desde nossa primeira
reunião, com a benção de nosso companheiro Ernesto Guevara, que usaríamos de
quaisquer expedientes que fossem necessários para que o povo pudesse ter sua
vontade assegurada. Até há pouco tempo acompanhávamos apreensivamente e de
forma otimista o avanço da democracia nos países da America latina e central, mas nos últimos anos percebemos que ela vem
sendo sistematicamente atropelada pelo poder das elites infiltradas em todas as
esferas e níveis do poder público e que portanto, neste momento faz-se
necessários outros métodos para conter essas forças, que se não detidas,
acabarão por escravizar novamente nosso sofrido povo. Vocês que aqui estão,
foram convidados por meio de indicações de outros membros e por estudos que
fizemos sobre suas vidas anteriores e são livres para sair pela porta por onde
entraram e esquecer o que ouviram, ou para ficar, sabendo que nunca mais terão
a vida que tinham antes se optarem por isso. Boa noite, companheiros e
desejamos que suas escolhas tragam paz
entre vocês e seus travesseiros.”
Nesse instante as luzes desse local apagaram-se e sumiram
dali todos que estavam envolvidos na organização, restando apenas alguns dos desconhecidos
que comigo ouviram a palestra e o velho galpão abandonado vazio. Todos foram
saindo, tentei conversar com alguns deles que não me deram atenção e foram
embora. Estariam ali, como eu? Ou já
faziam parte da organização? Não sei e acho eu nunca vou saber. Saí dali
profundamente impressionado, por aquelas
revelações tão profundas acerca do processo histórico brasileiro, da existência
real de tal organização de que Príamus havia me falado, mas que eu levava mais como uma fantasia dele
e mais ainda sobre o convite de tomar parte em tal empreitada tão derradeira. Recebi
um convite para um grupo de trabalho contra o Golpe enquanto estava no hospital.
Queria fazer mais. Queria dar um sentido pra tudo aquilo e de alguma forma
fazer valer a morte de Marcela. Se é que isso era possível. Então cheguei ali
pela mão de Príamus. Mas como ele sabia que eu
iria? Muitas questões externas e inúmeras outras que nasciam em mim.
A iniciação
Duas semanas após esse contato fantasma, recebi uma carta
oficial da organização, que repetia exatamente as diretrizes do grupo,
reiterava o convite para minha participação na Ordem dos Justos e estendia o convite
para Marina. A carta nos indicava, de forma codificada, um endereço e nos deixava claro que nosso comparecimento
no local nos colocava de forma irrevogável como membros da ordem e a partir daí
sujeitos as suas deliberações. Também deixava evidente que nossas identidades
atuais desapareceriam e que teríamos novas vidas a partir de nossa adesão.
Marina e eu estávamos mergulhados numa dor tal, que sabíamos que nada iria extingui-la. Mas
concordamos que a luta daria sentido a toda nossa historia e por isso fomos
juntos no endereço e no dia e hora marcados. Era um velho pavilhão abandonado, com iluminação baixa na beira do rio Guaíba.
Já estava entardecendo, e como fosse inverno já era escuro. Haviam mais ou
menos 10 pessoas no local com o rosto coberto por capuzes e sombras. Fomos
colocados sentados em duas cadeiras onde recebemos orientações acerca do que
seria nosso trabalho na organização. Estas atividades, na sua maior parte
direcionadas a disputa político partidária, mas podiam incluir também tarefas
de guerrilha, especialmente nesse momento de nossa história. Estávamos
dispostos a tudo que fosse necessário para que mais pessoas não precisassem
sentir a dor que sentíamos ali e pra sempre. Ao final da pequena palestra, em
espanhol, o representante principal da organização, vindo de Cuba para a
ocasião nos perguntou:
-Jura la lealtad a esa organización, comprometida con la
preservación de los más nobles valores humanos y con la lucha contra el poder
del capital financiero, y en defensa de la democracia. ¿Están dispuestos a
llevar su juramento las últimas consecuencias?
- Sim – Respondemos.
Éramos agora membros da Ordem dos justos e logos receberíamos
missões. Ao fim do nosso juramento. Todos foram saindo discretamente e sem
maiores explicações. Apenas disseram que logo receberíamos orientações. Um
deles tirou o capuz e aproximou-se de mim.
- E aí seu bunda mole, há quanto tempo. – Era Camilo, vestido
como um guerrilheiro e com uma barba que nem sua mãe o reconheceria.
- Cara, não acredito.
O Príamus colocou você nessa. Você não estava na Bahia ?? – Perguntei tentando
entender o que acontecia.
- Não, cara. Na verdade eu coloquei Príamus nessa e depois
ele foi atrás de você. Não posso lhe
dizer mais nada agora, mas nos falamos em Cuba. – Explicou-me ele em tom
misterioso.
- Porra, mas que historia é essa. Todo mundo dessa
organização vai pra Cuba?? Perguntei, ainda tentando entender.
- Sim, é mais seguro para nós ficarmos por lá. Hoje mesmo vou cumprir minha missão de
dar cabo de um juiz golpista aí e hoje mesmo saio do Brasil. – Continuou
Camilo.
- Como assim, dar cabo? –Perguntei, ainda pensando
alternativas.
- É o seguinte, maninho, a existência dele está perturbando e
mesmo extinguindo, como você sabe, a
existência de muitas pessoas e rompendo com o equilíbrio do sistema democrático
construído ao longo de muito tempo com muito esforço. Não podemos aceitar isso
e por isso ele recebeu três notificações informando que se não mudasse sua
postura nós o eliminaríamos.. Como você sabe, ele apenas reforçou sua segurança
pessoal. Nós sempre avisamos o eliminado antes. Normalmente ele não muda de
idéia. Bom, você vai saber mais logo adiante. Agora me dá um abraço, e logo nos
vemos. - Concluiu Camilo
Dito isso ele deu as costas e ficamos apenas Marina e eu por
mais algum tempo ali naquela bela
paisagem apreciando a noite e as luzes distantes no Guaíba e fumando um cigarro
no frio. Na manhã seguinte, acordamos com a notícia de que o juiz federal de 1°
instância, Renato Moura, foi decapitado e que sua cabeça foi deixada no colo da
estátua que fica na frente do plenário do Supremo Tribunal Federal. Era um
claro recado aos magistrados. Não haviam suspeitos do crime e todas imagens de
câmeras da residência do juiz e arredores que pudessem apontar para um suspeito
haviam desaparecido. Foi o que podemos chamar de um crime perfeito. Nós
sabíamos bem o que tinha acontecido, e
já tínhamos certeza que as coisas não iam se resolver sem sangue. Também
sabíamos que não fomos nós que demos o
primeiro tiro.
Orlando Cienfuegos
Recebemos através de Sebastian, convites para um jantar num
barco que navega no Guaíba. O jantar era promovido pela Associação Cultural
José Marti, em memória do movimento pela LEGALIDADE, ocasião em que Brizolla ocupou o palácio do governo Gaúcho ,
impedindo ou retardando o Golpe militar e garantindo a posse de João Goulart.
Sebastian disse que a galeria, da qual ele era dono, recebeu
os convites de forma estranha. Como eram 04 convites, ele resolveu levar Fernando,
seu companheiro e achou que nós precisávamos sair um pouco de casa. Aceitamos,
já suspeitando que tinha algo a ver com a organização. Estava uma noite muito
agradável no dia do evento. Uma embarcação nos aguardava na cais da Usina do
Gasômetro. Sentamos numa mesa que estava reservada para nós e desfrutamos de um
delicioso jantar, enquanto ouvíamos
alguns depoimentos de pessoas que de alguma forma participaram no episódio da legalidade
e também de estudiosos e professores convidados para a ocasião. Tomamos um
vinho e interagimos com o musico da noite. A certa altura apresentou-se a nós
um certo Juan Gonzáles, puxando conversa acerca das familiaridades entre a música uruguaia e os ritmos gaúchos.
Este senhor, que aparentava mais de 70 anos disse ter sido vizinho e amigo de
Brizolla, porquanto fosse vizinho do mesmo em Durazno , no Uruguai. Nos
convidou para visita-lo lá mesmo e disse que não aceitava não como resposta.
Disse que naquele fim de semana mesmo estava indo para lá e que gostaria que fossemos
com ele. A noite continuou regada a um bom vinho e nosso novo amigo nos premiou
com muitas histórias . Sexta feira recebemos pela manhã, Mariana e eu e também Fernando e Sebastian a
orientação de que estivéssemos prontos para passar 4 dias na fazenda de Juan, pois seu carro
viria nos buscar as 16 horas, e acrescentou que não nos preocupássemos com a
volta, pois já estava tudo organizado. Fernando e Sebastian acharam tudo muito
estranho mas eu acalmei eles por que já estava me acostumando com as estranhezas
da organização. Assim se deu. Fomos a Durazno, conhecemos sua maravilhosa
fazenda. Comemos muito churrasco uruguaio, tomamos grandes vinhos e passamos um
belo fim de semana entre amigos. Na despedida Juan abraçou-nos, deu-nos boas
vindas o Ordem e nos entregou envelopes que pediu só fossem abertos quando
estivéssemos em casa. Assim foi feito. Sebastian e Fernando não entenderam nada
disso, mas também não quiseram nos constranger. Quando chegamos em casa,
abrimos curiosíssimos nossos envelopes. Havia nos dois envelopes, orientações para que nos despedíssemos de
todos amigos em familiares, que só poderiam nos ver novamente, se assim
desejassem, em território cubano. Haviam novos documentos e novos passaportes
com nossos novos nomes e passagens para a ilha caribenha com data para
chegarmos e local para ficarmos. Marina
passaria a chamar-se Olivia Perez Cienfuegos e meu novo nome era Orlando
Cíenfuegos. Chegamos em metade de 2017.
Ficamos hospedados em Santiago de Cuba, região litorânea no sudeste da ilha.
Ali recebemos desde nossa chegada, diariamente, uma série de treinamentos que
iam desde pratica de artes marciais, uso de armas, língua espanhola, até
informações confidenciais sobre relações entre autoridades políticas de
diversas países. Após um ano de treinamento intensivo, fui convocado pelo
conselho da Ordem a cumprir uma missão no Brasil. Eu devia eliminar Miguel
Brenner, que ameaçava décadas de avanço democrático da nação e já havia sido
avisado em três ocasiões que se não saísse do cargo morreria. Ignorou a
mensagem e reforçou sua segurança. Miguel Brenner estaria dia 23 de setembro de
2018 numa Feira Internacional de Tecnologia em Novo Hamburgo, cidade próxima a
Porto Alegre. Nessa ocasião ele estaria
junto com o seu candidato a presidência, que concorreria nesse ano. Eu deveria estar ali em local já
definido, no meio de um bosque a cem metros do palco onde ocorreria a
solenidade. Minha fuga já estava organizada e minha missão era puxar o gatilho
e deixar para a imprensa uma fita anunciando que quem desrespeitasse a
democracia e a ordem definida nas urnas, iria cair, um a um, todos os cachorros que
trabalhavam para o capital e que haviam vendido sua pátria e as causas
populares. Marina ficou apreensiva com a notícia, mas sabia que tínhamos um
juramento e uma missão. Ela me aguardaria ali na ilha até que eu retornasse do
Brasil.
Chuva
Agora que você ouviu minha história, sabe quem foram meus
carrascos, de onde eu vim e para onde estou indo, provavelmente você sabe que
eu sou. Mas a questão, na verdade, é,
quem você é? E agora, eu estou a
um tiro de mudar a historia, com o dedo no gatilho e o desgraçado do Miguel
Brenner na mira. Sempre me perguntei o que faria alguém, que chegou até aqui onde
estou, vacilar e acho que agora sei. Não
é medo de ser pego , porque depois que te tiram uma parte que você amava muito
você não consegue imaginar que alguém possa te causar dor maior que essa.
Também não seria por piedade da vítima, pois o golpe que esse desgraçado
promoveu acabou com a vida de muita gente muito melhor do que ele, como minha
sonhadora Marcela. Acho que na verdade
tive por um instante uma dúvida. Não estariam eles, os capitalistas
certos e nós errados. Eu não estaria na verdade matando aqui alguém, que de
qualquer forma, ou presenteado por qualquer direito divino seja de fato maior
do que eu. Não seria exatamente assim
que o mundo devia ser e nesse caso nossa resistência inútil?
Essa dúvida me atacou profundamente por alguns segundos enquanto
o tive na mira com dedo no gatilho até que, a primeira gota caiu. Começou a
chover, e o universo se realinhou. Agora somos todos
iguais.